entende por sustentabilidade e por bem-estar animal,
usaremos este espaço no Boletim APAMVET para apresentar
a minha visão sobre o assunto. Sem a pretensão
de apresentar uma fundamentação formal e científica
sobre o tema, irei apenas trazer algumas considerações
empíricas a respeito.
Antes, porém, é preciso que uma premissa seja considerada:
a de que nós, seres humanos, estamos em
constante evolução, inclusive e principalmente, ética.
Esta é a dimensão no complexo processo da evolução
que nos interessa para o presente contexto. A Professora
Terezinha Azerêdo Rios nos diz que ética é “o olhar
agudo que procura descobrir os fundamentos dos valores,
tendo como referência a dignidade humana e, como
horizonte, a construção do bem comum”.
Em síntese, ética está relacionada, basicamente,
à preocupação com algo além de si mesmo. Esse algo
começa pelos familiares e se expande. Passa por outras
pessoas próximas na sociedade, por outros seres desconhecidos
da mesma espécie, por outros seres de espécies
diferentes, e assim por diante, até chegar à preocupação
com o planeta e o Universo. Talvez ainda estejamos no
início remoto desse processo evolutivo, mas é fato que
estamos em progresso. Particularmente, entendo que
se trata de um processo contínuo, irreversível e, mais
ainda, que se acelera com o tempo, em especial pela capacidade
de aprendizado coletivo e da capacidade de
transmissão de herança social, características essas que
diferenciam o ser humano dos demais animais.
Ainda sobre a premissa da evolução ética, é necessário
considerar que – diferentemente do que muitos
críticos pensam – o ser humano tende a se preocupar
mais com os outros naturalmente e não apenas como
consequência de uma necessidade de sobrevivência ou
de utilidade. Para exemplificar, a defesa de políticas de
redução de emissão de gases de efeito estufa é de fácil
compreensão, porque se não o fizermos, corremos o
risco de vivermos em um mundo de clima mais quente.
Por outro lado, podemos nos preocupar com o risco de
extinção do Cheilinus undulatus, que é um peixe oceânico
que vive em corais na costa leste da África, sem
termos muita (ou mesmo nenhuma!) ideia do porquê a
existência dessa espécie seria importante para nós. Talvez
sua existência até nem tenha importância prática
alguma, mas poderia ter uma importância ética para
algumas pessoas, e esta deve ser considerada. É essa
ética “sem fins utilitários” que me parece cada vez mais
relevante e que não pode ser desconsiderada nem desrespeitada.
Em síntese, podemos nos preocupar com o
outro, sem termos nenhum interesse direto com isso.
Mas, mesmo assim, nos preocupamos; queremos o seu
bem, como falamos coloquialmente. Por que cuidar?
Porque fazer o bem nos faz bem, e basta.
Apesar de a ciência já nos ter dado evidências desse
processo de evolução, não faz muito tempo que as instituições
mundiais reconheceram-no, ao propor políticas
mundiais para o desenvolvimento do bem comum.
No início dos anos 1990, a FAO, Organização das Nações
Unidas para Alimentação e Agricultura, lançou
sua concepção sobre sustentabilidade para contemplar
a garantia da obtenção e satisfação continuadas
das necessidades humanas para a geração atual e para
as futuras gerações. A preocupação com o ambiente e,
consequentemente, com as gerações futuras que dele
dependerão, estava no foco.
Atualmente, a teoria de sustentabilidade da FAO
contempla a garantia dos direitos e do bem-estar humanos,
sem reduzir a capacidade do planeta em manter
a vida e sem ocorrer às custas do bem-estar de outros.
Pode parecer pequena a mudança de concepção nesses
vinte e poucos anos, mas não é. Fala-se de bem-estar
humano, capacidade do planeta em manter a vida e
bem-estar dos outros. Observa-se que “necessidade” foi
substituída por “bem-estar”. Houve, portanto, uma expansão
significativa da concepção de sustentabilidade,
em pouco tempo. Parece-me mais uma demonstração
do reflexo da nossa evolução.
Mas e o bem-estar animal, como se insere no contexto?
A própria FAO desenvolveu toda uma política em
prol do bem-estar animal (visite: http://www.fao.org/
ag/againfo/themes/animal-welfare/en/ para melhor
conhecê-la).
Existem paradoxos significativos para serem trabalhados
na busca pela sustentabilidade, imaginando-se
que o bem-estar animal está inserido nesta concepção.
De um lado, ainda temos 12,5% da população mundial
que passa fome crônica (desnutrição estrutural).
Sem querer endossar o discurso batido de que temos
que acabar com a fome doa a quem doer( ambiente,
animais etc.) porém, de uma visão eminentemente
pragmática, animais continuarão sendo fonte importante
para o suprimento humano. Por outro lado, o
aumento de renda de outra parte significativa da população
– inclusive no Brasil – tem permitido que
pessoas optem por dietas alternativas, que poupam
certos impactos ao ambiente, inclusive sobre os animais.
Temos, portanto, uma sociedade extremamente
heterogênea, com necessidades, anseios e níveis de
bem-estar diferentes, mas o fato é que o mundo é um
só. E que, portanto, temos que estabelecer acordos entre
os diferentes grupos sociais, sempre na tentativa de
nos pautar por respeito, democracia, racionalidade e,
principalmente, ética. Conflitos e tensões continuarão
ocorrendo e teremos que saber lidar com eles.
Os segmentos produtores terão cada vez mais que
se preocupar com as exigências éticas dos consumidores.
Estes, por sua vez, também precisam compreender
a complexidade existente por traz de um processo
produtivo, especialmente o agropecuário. Há exageros
dos dois lados: atrocidades acontecem todos os dias em
fazendas e agroindústrias; mas preconceitos irracionais
e exagerados também estão diariamente nas falas
e ações de consumidores, especialmente os dos grandes
centros urbanos, que desconhecem a complexidade da
natureza e de sua exploração. Não há vilões ou mocinhos.
Consumidor culpar produtor é um equívoco dos
mais perversos, mesmo porque não haveria produção se
não fosse para atender ao consumo (uma das leis mais
básicas da economia). Precisamos sim, melhorar a comunicação
entre os diversos segmentos da sociedade.
Colocar as cartas na mesa, dispondo-se para um diálogo
aberto e transparente.
Parece-me que o acesso ao conhecimento, especialmente
pelo avanço tecnológico nos meios de comunicação,
será um fator cada vez mais decisivo no contexto.
Informações poderão ser utilizadas para esclarecer as
pessoas, para que possam tomar decisões mais esclarecidas
e racionais. Marcas e produtos “mais éticos” certamente
ganharão espaço. Campanhas “pró” ou “contra”
alguma coisa serão cada vez mais recorrentes. E são
muitíssimo bem vindas.
Os cientistas terão papel central nesse processo
de revisão de sistemas produtivos. Novas tecnologias
surgirão para pouparem recursos escassos. Não terão
apenas que buscar tecnologias mais produtivas, como
faziam (e a maioria ainda faz) até então. Terão que buscar
produtividade associada à menor impacto ambiental
e maior preocupação com a qualidade de vida dos animais.
Paulatinamente estamos começando a presenciar
o surgimento de grandes projetos de pesquisa multidisciplinares,
alguns na grande área da Zootecnia e Recursos
Pesqueiros.
Mas não está apenas na ciência a estratégia para
seguirmos em busca do desenvolvimento e da evolução.
Tento defender a tese de que, com o estoque de
conhecimento que já temos, poderíamos – e muito
– melhorar o bem-estar de milhares de animais de
produção. Ainda temos problemas evidentes de má-
-nutrição, sanidade, ambiência, manejo e gestão, em
todos os cantos do país, em todas as espécies. Já dispomos
de soluções conhecidas, mas que, na prática,
não aplicamos, independentemente do motivo. Jogar
toda a responsabilidade da sustentabilidade e do bem-
-estar animal na ciência é um exagero e mesmo uma
injustiça. Nós, técnicos, temos uma enorme responsabilidade
no cotidiano. Responsabilidade de garantir
condições mínimas de uma vida decente para os animais.
Em muitas situações do dia a dia, sabemos como
agir, mas nem sempre o fazemos da melhor forma.
Está na mão de todos nós a busca por um mundo
mais sustentável, mais ético. Precisamos de mais respeito
a nós mesmos, aos próximos, aos animais, e
ao ambiente. É um processo que está acontecendo.
E assim continuará. Talvez em um ritmo muito lento,
para os mais ativistas. Talvez em um ritmo muito rápido,
para os mais conservadores. Mas continuará.
Ainda bem!
Prof. Augusto Hauber Gameiro
Laboratório de Análises Socioeconômicas e Ciência Animal
(www.facebook.com/LAE.FMVZ.USP)
Departamento de Nutrição e Produção Animal
Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia -
Universidade de São Paulo
gameiro@usp.br
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