Com meros 7 centímetros de comprimento, o escorpião amarelo (Tityus serrulatus) não parece muito ameaçador, mas a espécie é, na verdade, a mais peçonhenta da América do Sul. Todos os anos, mais de 1,2 milhão de pessoas em todo o mundo são vítimas de seu veneno. Dessas, cerca de 3 mil acabam morrendo.
De acordo com dados da literatura científica, a maioria das mortes decorrentes da picada do escorpião amarelo – espécie venenosa prevalente no Sudeste brasileiro – está relacionada a complicações cardíacas e pulmonares que resultam em um quadro de insuficiência respiratória.
Um estudo publicado nesta terça (23/02) por pesquisadores brasileiros na revista Nature Communications sugere que o problema poderia ser evitado – ou pelo menos minimizado – com a pronta administração de medicamentos anti-inflamatórios encontrados em qualquer farmácia, como a indometacina e o celecoxibe.
“Nossos experimentos foram feitos com camundongos, mas há grandes chances de que os resultados se repliquem em humanos, pois as bases moleculares – os mediadores envolvidos na reação inflamatória pulmonar – são iguais nesse caso. Se isso se confirmar, será uma ferramenta importante no pronto atendimento das vítimas e certamente vai diminuir a mortalidade”, avaliou a pesquisadora Lúcia Helena Faccioli, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da Universidade de São Paulo (USP).
O trabalho foi desenvolvido com apoio da FAPESP durante o pós-doutorado de Karina Furlani Zoccal, no âmbito de um Projeto Temático coordenado por Faccioli na USP.
Conforme explicou a professora da FCFRP-USP, sempre que alguém é picado pelo T. serrulatus ocorre uma reação inflamatória local que causa fortes dores, mas não leva à morte. Em alguns casos, porém, também é desencadeada uma reação inflamatória sistêmica, que pode resultar em edema pulmonar (acúmulo de líquido no pulmão) e prejudicar a respiração.
Até o momento, o consenso entre os cientistas era que a gravidade do quadro de envenenamento dependeria essencialmente da relação entre a massa corporal da vítima e a dose de toxina inoculada. No entanto, o estudo da FCFRP-USP indica que pode haver fatores genéticos relacionados, que influenciariam na capacidade do indivíduo de produzir certas moléculas inflamatórias e anti-inflamatórias.
“Os mecanismos pelos quais essa reação sistêmica é disparada, os mediadores envolvidos, não eram conhecidos e foram objetos do nosso estudo”, contou Faccioli.
Em busca de um suspeito
Em trabalhos anteriores, o grupo coordenado por Faccioli já havia mostrado por meio de experimentos com camundongos que a peçonha do escorpião amarelo era reconhecida por receptores celulares do tipo Toll, que fazem parte do sistema imune inato. Também havia constatado que isso induzia a produção de um mediador inflamatório chamado interleucina-1 beta (IL-1β), além de mediadores lipídicos conhecidos como prostaglandina E2 (PGE2) e leucotrienos B4 (LTB4).
“Partimos, portanto, da hipótese de que o edema pulmonar pós-envenenamento seria induzido pela produção de IL-1β derivada da ativação do inflamassoma. Isso porque dados da literatura sugerem que quando uma substância é reconhecida por receptores do tipo Toll ocorre ativação do inflamassoma”, explicou a pesquisadora.
O inflamassoma é um complexo localizado no citoplasma das células de defesa e formado por várias proteínas, entre elas as caspases. Quando ele é ativado, ocorre a liberação de IL-1β, que induz o processo inflamatório tanto por mecanismo direto quanto indireto, por meio da produção de mediadores lipídicos como PGE2 e LTB4. Estes mediadores são os responsáveis pela atração para o pulmão de outras células de defesa e pelo edema pulmonar, que caracterizam o processo inflamatório. Embora a inflamação seja um mecanismo de defesa essencial, quando exagerada pode levar à morte.
Os primeiros testes in vitro, feitos com macrófagos “selvagens” (sem nenhum gene alterado) de camundongos, confirmaram que o veneno do escorpião amarelo de fato ativa o inflamassoma e induz a produção de IL-1β. Quando o mesmo experimento foi feito com células geneticamente alteradas – sem alguns dos genes codificadores das proteínas que compõem o inflamassoma –, não houve produção de IL-1β e nem de mediadores lipídicos.
O passo seguinte foi testar a hipótese in vivo. Ao analisar o tecido pulmonar de camundongos inoculados com a peçonha do T. serrulatus, os pesquisadores observaram a formação de edema e um aumento no número de neutrófilos (um tipo de célula de defesa) – dois fatores que indicam inflamação. Além disso, havia grandes quantidades de IL-1β, PGE2 e LTB4.
Para ter certeza de que a IL-1β era a peça-chave na reação inflamatória, o grupo usou dois modelos de camundongos geneticamente modificados. Um deles não tinha os genes que codificavam duas das proteínas formadoras do inflamassoma. O outro não tinha o gene da proteína que funciona como receptor de IL-1β nas células.
Nesses dois modelos, todos os animais sobreviveram mesmo quando inoculados com doses letais do veneno, confirmando que sem a atuação da IL-1β o edema pulmonar não progride ao ponto de tornar-se letal.
Aliado desconhecido
Ao analisar o tecido pulmonar desses camundongos geneticamente modificados que sobreviveram às doses letais de veneno, os cientistas notaram que eles produziam menor quantidade de PGE2 e de LTB4 quando comparados aos camundongos “selvagens”.
O grupo então decidiu investigar o papel desses dois mediadores na reação inflamatória e, para surpresa dos cientistas, descobriram que o LTB4 – até então descrito como uma molécula pró-inflamatória – tinha na verdade a função de proteger o tecido da inflamação.
“Fizemos o experimento com animais geneticamente modificados para não produzir a enzima que participa da produção do LTB4. Achávamos que certamente eles iriam sobreviver a uma dose letal do veneno, pois não tinham um dos componentes da resposta inflamatória. Mas, na verdade, observamos que eles morriam bem mais rápido que os camundongos selvagens e tinham uma inflamação pulmonar exagerada, com muita produção de IL-1β e PGE2”, contou Faccioli.
Em seguida, o grupo tratou animais “selvagens” inoculados com doses letais de veneno com indometacina – uma droga inibidora da síntese de prostaglandinas (inclusive a PGE2). Todos sobreviveram.
Por meio de estudos in vitro, o grupo descobriu que a PGE2 aumenta a produção de uma molécula chamada monofosfato cíclico de adenosina (cAMP), que por sua vez leva a um aumento de IL-1β e potencializa a inflamação. Já o LTB4 diminui a produção de cAMP e, consequentemente, de IL-1β.
“Se conseguirmos mostrar que em humanos o edema pulmonar também é mediado por PGE2 e IL-1β, o impacto para a população será grande. As vítimas poderão ser tratadas com medicamentos disponíveis em qualquer farmácia enquanto aguardam a chegada do soro antiescorpiônico”, disse Faccioli.
Em parceria com a Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), o grupo pretende dosar todos esses mediadores envolvidos na reação inflamatória pulmonar no soro de pacientes picados pelo escorpião amarelo.
“Também faremos estudos in vitro usando células humanas estimuladas com a peçonha para ver se apresentam o mesmo padrão molecular que observamos nas células de camundongo. Se os resultados forem semelhantes, podemos pensar em um projeto – em parceria com médicos – para tratar vítimas do escorpião amarelo com indometacina”, afirmou Faccioli.
Por
Karina Toledo | Agência FAPESP
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