“[Glasgow e Seismic] foram, de certa forma, os meus primeiros filhos. Ensinaram-me a ser humano. Ou como ser um ser humano melhor, a pôr as necessidades de outra pessoa à frente das minhas. Ou talvez tenha sido a minha primeira mulher que me ensinou isso quando decidiu deixar-me com dois cães e uma casa vazia”
Quando, há mais de uma década, cheguei a casa numa tarde chuvosa de novembro, encontrei um caminhão de mudanças no caminho de acesso e, atrás dele, um carro da polícia. O meu primeiro pensamento foi rápido, claro e instintivo: estávamos a ser despejados?
Há quase um ano que vivia com a minha mulher numa pequena casa arrendada em Middlebury, Vermont. Não tinha sido um ano fácil. Discutíamos constantemente, as discussões transformavam–se em confrontações feias e as confrontações duravam até tarde na noite.
Mas nessa manhã tinha saído de casa sem suspeitar de nada. Não estava de todo preparado para a cena que iria encontrar mais tarde nesse dia, a cabeceira de madeira da minha cama a sair pela porta principal, nos braços do meu sogro.
“O que se passa?”, perguntei. “O que está a fazer?”
Ele nem sequer olhou para mim enquanto se dirigia para o caminhão de mudanças.
“Vamos precisar que o senhor se afaste da residência”, disse o polícia, aparecendo de repente muito perto de mim.
Passariam mais nove anos até eu deixar de beber e, assim, nessa noite – a noite em que a minha mulher me deixou – culpei tudo e toda a gente exceto a mim próprio.
Afastei-me da casa e da visão demasiado triste do caminhão de mudanças, da polícia e da carrinha do meu sogro, e dirigi-me diretamente para o bar mais próximo, onde contei a minha história a toda a gente enquanto despejava caneca após caneca de cerveja morna a dois dólares (1,7 euros). Não me sentia culpado. Não me sentia envergonhado.
Mal me lembro do regresso a casa. Lembro-me é do que encontrei quando lá cheguei. À minha espera à porta, esfomeados e desorientados, estavam Glasgow e Seismic, os nossos dois cães São Bernardo. Em cima de um caixote de papelão logo à entrada encontrei uma carta.
A minha mulher explicava que não podia levar os cães com ela. Ia mudar-se para casa dos pais enquanto punha a sua vida em ordem e lá não havia espaço para dois animais de quase 70 quilos cada. No entanto, ela esperava que eu cumprisse as minhas obrigações para com ela e para com os nossos animais e tomasse conta deles.
Os cães olharam para mim. Eu olhei para eles. Começámos a nossa nova vida juntos.
Nessa primeira noite, subi para o que tinha sido o nosso quarto e, não sabendo o que fazer mais, apaguei as luzes e deitei-me no chão. Os cães imitaram-me. Deitaram-se comigo, um de cada lado. Glasgow, a cadela de quatro anos que estava conosco desde cachorrinha, deitou-se nas minhas costas. Seismic, o macho que tínhamos adotado da Sociedade Protetora dos Animais de Chittenden County, aninhou-se na curva do meu braço. Ele cheirava muito mal. Mas eu também não cheirava muito melhor.
Numa casa vazia, tudo soa mais alto. Parece uma coisa sem importância, mas foi transformadora; eu vivia naquela casa há quase um ano e, de repente, ela era-me completamente estranha e deixava–me desorientado. Todas as manhãs, eu acordava com dois animais gigantes em cima de mim, a respirarem na minha cara, exigindo ser passeados. Eu saía com eles e, no regresso, ia verificar o telefone na esperança de, por qualquer razão, ter perdido uma chamada da minha mulher dizendo que tinha mudado de ideias e estava de regresso a casa. Tal chamada nunca aconteceu.
Tentei continuar com a minha vida. Comprava comida, cumprimentava os vizinhos. Agora percebo que estava em estado de choque, fingindo que tudo iria ficar bem. A casa ia ficando desmazelada. O cesto da roupa suja transbordava, os sacos de lixo acumulavam-se na cozinha. A minha cama era um saco-cama.
Os pelos de cão juntavam-se em rolos gigantes nos cantos das divisões e formavam grandes manchas no tapete. Todos os dias fazia uma hora de caminho para o trabalho e outra de regresso a casa e, sem me ter libertado da minha vida anterior, não conseguia gerir as minhas responsabilidades. Tratei de arranjar alguém que tomasse conta dos cães.
“Acabou de se mudar para cá?”, perguntou ela, examinando a casa quase vazia.
“Não”, respondi, incapaz de lhe dizer a verdade. “Sabe como é, optei por uma forma de vida minimalista.”
“Certo.”
Um dia, tive de sair mais cedo do que o habitual para o trabalho. Liguei para a rapariga e disse-lhe que iria deixar a chave debaixo do tapete. Mas ela nunca apareceu. Naquela noite, quando cheguei encontrei o hall encharcado de urina. Na semana seguinte recebi um telefonema no ginásio. Os cães tinham conseguido sair e estavam a vasculhar no lixo da mercearia ao fundo da rua, a comer salada de frango e outros restos de comida passada de prazo. Tinham sido reconhecidos por um vizinho.
Fui para casa, aterrorizado com a ideia de que eles tivessem sido levados, de que já lá não estivessem quando eu chegasse, e, em vez deles, encontrasse um carro da polícia à frente de casa mais uma vez, e um rasto de bolas de pelo a esvoaçar pelo pátio. Glasgow e Seismic ficavam sempre felizes por me ver, acreditando sempre que eu traria comigo comida de cão ou uma pizza de queijo, lhes proporcionasse um belo passeio ou lhes desse um banho. Eles acreditavam em mim quando mais ninguém o fazia, nem sequer eu próprio. Acho que os mantive por tanto tempo naquele caos, porque não conseguia suportar a ideia de deixar de os amar, não conseguia suportar a ideia de deixar de ser amado por eles. Mas a verdade era que eu não conseguia cuidar deles, não da maneira que eles precisavam.
Em maio, ouvi um rumor de que uma família que vivia nos arredores da cidade estava à procura de dois cães de grande porte para adotar. Passei pela quinta e vi uma cerca branca com mais de um quilometro, um canteiro de flores limpo e arranjado, uma caixa de correio recém-pintada. Guardei o número de telefone deles na minha carteira por uma semana antes de lhes ligar. Outra semana passou antes de eu conseguir falar quando alguém atendia.
Combinei encontrar-me com a família numa noite quente de verão, em junho. Meti os cães dentro da minha carrinha Chevrolet preta juntamente com os seus brinquedos de roer, camas e tigelas de comida.
Glasgow, como sempre, estava toda animada para entrar no carro. Ela gostava de se sentar no banco do passageiro. Eu abria uma fresta da janela e ela enfiava o nariz no pequeno espaço aberto e começava a babar-se, deixando fios de saliva seca ao longo do vidro. Naquele dia, eu estendi a mão e afaguei–lhe as orelhas. Chorei enquanto conduzia, chorei enquanto estacionava no parque do supermercado local.
A nova família lá estava dentro da sua carrinha Ford de caixa aberta. Um homem saiu do carro e caminhou na minha direção. Eu abri a porta traseira do meu Chevrolet Blazer.
“São estes os cães?”, perguntou ele.
Eu limitei-me a acenar com a cabeça. “Por favor, cuidem bem deles”, disse eu com a voz embargada.
A perda da minha mulher tinha sido repentina, um golpe forte que me atingiu subitamente. A perda dos cães, no entanto, tinha tido um período de preparação; fui-me aproximando dela de forma gradual e, depois, vi-me para lá dela, com a pressão do tempo a empurrar-me inevitavelmente para a frente e para baixo.
Naquela noite, no parque de estacionamento do supermercado, lembro-me de levar o Seismic, que não hesitou, para a parte de trás da outra carrinha. Com Glasgow foi necessário mais persuasão. Estava com alguns problemas nos quadris e tinha começado a mover-se mais lentamente. Penso que, atenta ao meu estado de espírito, ela entendeu alguma coisa do que estava a acontecer. Finalmente, ambos estavam no outro carro. Abracei-os, inalando o seu cheiro, apertando Glasgow contra mim uma última vez.
Deixei Vermont quando o divórcio ficou concluído. Não havia nada para mudar, só eu. Pensei que tudo seria diferente quando saísse daquela casa, quando as questões legais estivessem resolvidas, quando tivesse um novo emprego, quando deixei de ter esperança de que a minha ex-mulher me ligasse. Não passei pela quinta depois de lhes ter entregado Seismic e Glasgow. Não os fui visitar. E se eles achassem que eu estava ali para os levar para casa?
Só quando fiquei sóbrio e tive os meus próprios filhos é que voltei a sentir novamente aquela responsabilidade incrível – a confiança total que outro ser deposita em nós -, a fé em que vamos trazer a pizza, dar os passeios e os banhos quentes. Em que nós seremos aquele que guia, que cuida, que ouve.
Glasgow e Seismic já morreram. Já passou o dobro, ou mais, do tempo normal de vida de um São Bernardo. Mas eles foram, de certa forma, os meus primeiros filhos. Eles ensinaram-me a ser humano. Ou como ser um ser humano melhor, a pôr as necessidades de outra pessoa à frente das minhas. Ou talvez tenha sido a minha primeira mulher que me ensinou isso quando decidiu deixar-me com dois cães e uma casa vazia.
Há relativamente pouco tempo, uma noite em que estava sozinho em casa, ouvi a minha filha a gritar no quarto dela. Estava a ter um pesadelo. Subi as escadas, mas quando cheguei ela já tinha adormecido novamente.
Deitei-me ao lado dela na sua pequena cama, beijei-lhe a nuca e afastei-lhe o cabelo do rosto. Depois disse uma pequena oração de agradecimento e dei graças por este papel, por esta oportunidade de cuidar.
Pauls Toutonghi, que leciona no Lewis & Clark College, é autor do livro de não ficção Dog Gone, editado neste mês pela Knopf.
Exclusivo DN/The New York Times
*Esta notícia foi escrita, originalmente, em português europeu e foi mantida em seus padrões linguísticos e ortográficos, em respeito a nossos leitores.