sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Arqueologia na Amazônia elucida mistério de 500 anos


 A imagem mais corriqueira que se tem das tribos pré-históricas amazônicas é que seu modo de vida era baseado na caça e na coleta de alimentos, pois na Amazônia central não haveria recursos para sustentar grandes povoamentos.

Essa imagem, e sua explicação, foram construídas ao longo de séculos de colonização da calha do Amazonas, onde jamais se encontraram vestígios dos imensos povoados indígenas descritos no século 16 pelo frei Gaspar de Carvajal.

Como falta de evidência nunca significou evidência de ausência, pesquisas arqueológicas realizadas na última década detectaram os restos do imenso povoamento descrito por Carvajal. Faltava saber como foi que milhares de índios encontravam sustento no local. Não mais.

Um novo estudo arqueológico acaba de demonstrar que, há mais de mil anos, os índios da Amazônia central seriam caçadores esporádicos e, para alimentar milhares de pessoas, eles dependiam principalmente da pesca, assim como ocorre com as populações ribeirinhas atuais. O consumo de tartarugas também era fonte importante de proteína animal.

O trabalho foi publicado no Journal of Archaeological Science. As escavações foram feitas no sítio arqueológico Hatahara, que vem sendo estudado há mais de uma década pelo arqueólogo Eduardo Góes Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP), com apoio da FAPESP.

Hatahara fica na margem esquerda do rio Solimões, em Iranduba (AM), a cerca de 20 quilômetros do encontro das águas dos rios Negro e Solimões, uma das regiões de maior biodiversidade do planeta. O sítio foi ocupado continuamente por mais de mil anos, entre os anos 300 e 1500.

O estudo foi focalizado na chamada fase Paredão (entre os anos 750 e 1230), que leva este nome por causa das características da cerâmica usada pelos índios no período. Nessa fase, Hatahara era um cacicado enorme. Ocupava pelo menos 20 hectares e se estendia por vários quilômetros na margem do rio. Reunia dezenas de aldeias onde viviam milhares de índios. Como faziam para alimentar tanta gente era o que queria descobrir a equipe de arqueólogos.

Durante as escavações, eles coletaram vestígios de milho, inhame e mandioca, espécies que podem ter sido cultivadas em Hatahara, assim como várias espécies de palmeiras. A surpresa veio quando estudaram os quase 10 mil vestígios de animais vertebrados, como fragmentos de ossos de mamíferos e répteis, e esqueletos e espinhas de peixe.

“Fala-se muito na caça na Amazônia como modo preferencial de subsistência dos índios. Quando começamos a escavação, tínhamos a expectativa de achar muitos restos de mamíferos”, disse a zooarqueóloga Gabriela Prestes-Carneiro, primeira autora do artigo e responsável pelo trabalho de análise e catalogação dos restos animais encontrados em Hatahara.

“Para a nossa grande surpresa, mais de 90% eram peixes”, disse Gabriela, pesquisadora da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), em Santarém. Em seguida, vieram os restos de quelônios, principalmente de tartaruga-da-amazônia. “Restos de mamíferos não passaram dos 3%.”

Em sua maioria eram pequenos marsupiais como os gambás ou roedores como a capivara, os ratos-de-espinho e a cutia. Também foram achados restos de répteis (jacaré, lagartos e cobras) e de aves.

O cardápio de pescado consumido em Hatahara era muito variado: nada menos que 37 táxons, pertencentes a 16 das 28 famílias de peixes que habitam os rios da região.

As espécies prediletas eram o pirarucu e seu primo, o aruanã. Não por acaso, o pirarucu é uma das maiores espécies de peixe de água doce do mundo, podendo atingir 4,5 metros e pesar 200 kg. Por suas proporções, o pirarucu era uma fonte preferencial de proteína animal para os índios.

O segundo grupo mais consumido eram os bagres (ou peixe-gato ou peixes lisos, como são conhecidos na região), caso do surubim, do pintado, do acari, do bodó e tamoatá. A seguir vinha a família das piranhas, especialmente pacu, tambaqui, traíra e o peixe-cachorro. Por fim, entre as principais espécies mais capturadas, estavam os tucunarés, enguias e arraias, entre muitas outras.

“Além das espécies comerciais na Amazônia central, também encontramos espécies que são atualmente pouco consumidas pela população ribeirinha, como o muçum (ou enguia) e diferentes tipos de bacu, cuiú-cuiú e reco-reco”, disse Gabriela. O consumo de tartarugas ocupava também um lugar importante na dieta indígena.

Gaspar de Carvajal

A diversidade do pescado consumido pelos índios pré-históricos demonstra que eles tinham grande conhecimento dos hábitos daquelas espécies, bem como o domínio de técnicas sofisticadas de pesca.

“Os peixes tinham uma importância muito grande ao longo do ano na subsistência da população de Hatahara”, disse Gabriela. “Várias espécies têm hábitos sazonais e só são pescadas em determinadas épocas do ano e em locais distintos. Os índios sabiam quando pescá-las e sabiam onde encontrá-las: em igarapés, lagos, baixos de praia e o leito dos rios.”

De acordo com Neves, “os achados são importantes porque, pela primeira vez, teremos a publicação de um estudo sistemático sobre restos de fauna em um sítio da Amazônia”.

“O estudo complementa trabalhos anteriores que mostram que a população que ocupou o sítio tinha uma dieta diversificada, baseada no manejo de recursos aquáticos e de plantas domesticadas e não domesticadas. Isso mostra que nas áreas ribeirinhas da Amazônia era possível que populações relativamente numerosas tivessem ocupações bem-sucedidas sem dependência da agricultura”, disse Neves, que coordenou o Projeto Temático “Cronologias regionais, hiatos e descontinuidades na história pré-colonial da Amazônia”.

A identificação dos restos de peixes coletados em Hatahara foi realizada por Gabriela no Museu de História Natural de Paris, que conta com uma das melhores e mais diversas coleções de peixes amazônicos.

Ela pretende criar uma coleção de pesquisa semelhante na UFOPA. Para tanto, está realizando coletas na Amazônia central, no rio Tapajós, no rio Guaporé em Rondônia e também na Bolívia.

Este estudo de Hatahara comprova os escritos do frei Gaspar de Carvajal, que em 1542 navegou pela região na expedição capitaneada pelo conquistador espanhol Francisco de Orellana.

Descendo o Solimões desde o Peru, imediatamente antes de atingir a confluência com o Negro, Carvajal descreveu em seu Descobrimento do rio de Orellana: “El lunes de Pascua de Espíritu Santo por la mañana pasamos a vista y junto a un pueblo muy grande y muy vicioso, y tenía muchos barrios, y en cada barrio un desembarcadero al río, y en cada desembarcadero había muy gran copia de indios, y este pueblo duraba más de dos leguas y media”.

A antiga légua europeia media 6,6 km, logo Carvajal descreveu uma aldeia que ocupava 16 km da margem do rio. Com a chegada dos europeus e de suas epidemias, todas aquelas aldeias foram dizimadas, riscadas do mapa e cobertas pela mata. Por isso mesmo, sua existência foi questionada.

O estudo sistemático do sítio arqueológico de Hatahara não só comprovou a existência da enorme aldeia descrita por Carvajal, como agora, com este trabalho de zooarqueologia, solucionou um mistério de 500 anos. Qual era o segredo por trás da subsistência de milhares de índios? Peixe.

O artigo Subsistence fishery at Hatahara (750–1230 CE), a pre-Columbian central Amazonian village (doi:10.1016/j.jasrep.2015.10.033), de Gabriela Prestes-Carneiro, Eduardo Góes Neves e outros, publicado no Journal of Archaeological Science: Reports, pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2352409X15301632



Por
Peter Moon | Agência FAPESP

Fonte:
 

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