As cobras-covinha crescem até um metro de comprimento e matam suas presas usando injeções de veneno. Uma vez que o veneno da cobra entra em ação, as vítimas desmaiam por causa de uma queda da pressão arterial, deixando-as prontas para serem comidas, começando pela cabeça. Este é o hábito alimentar da jararaca-ilhoa, serpente encontrada na bacia Amazônica e nas florestas do Brasil, cujo veneno costumava ser usado pelos índios na ponta de suas flechas e atualmente é a matéria-prima de um dos medicamentos mais comumente prescritos para a hipertensão – captopril.
“Este [veneno de cobra] abriu uma nova classe de medicamentos”, contou à CNN Zoltan Takacs, toxicologista fundador do projeto World Toxin Bank (Banco Mundial de Toxinas, em tradução livre), referindo-se a uma classe de medicamentos conhecidos como inibidores da enzima de conversão da angiotensina (ECA), agora usada para tratar mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo.
Aprovado pela Administração de Drogas e Alimentos (FDA) dos Estados Unidos em 1981, o captopril não é uma droga nova, mas a sua comercialização levantou a ideia de que venenos poderiam ser usados para criar medicamentos modernos. O campo da medicina baseada em venenos floresceu desde então, e equipes de todo o mundo estão explorando os animais mais remotos em busca de drogas potentes que podem surgir a partir de seu veneno altamente evoluído.
Veneno de cobra abrindo portas
Desde o captopril, mais dois medicamentos – eptifibatide e tirofiban – produzidos com base nos venenos da cascavel-anã (Sistrurus miliarius barbouri) e da víbora Echis carinatus, respectivamente, foram aprovados no final de 1990 para tratar outras doenças cardíacas, como angina. “[Nos Estados Unidos], para os principais tipos de ataque cardíaco há três drogas e duas vêm do veneno de serpentes”, aponta Takacs.
Estima-se que, em todo o mundo, até 100 mil mortes ocorrem por causa de mordidas de cobras venenosas a cada ano. Porém, como pudemos ver, estes répteis também estão deixando sua marca na saúde humana de forma bem diferente daquela pretendida pela natureza – salvando vidas.
Aprendendo com a evolução
“Os venenos evoluíram para imobilizar ou matar. Eles têm como alvo as funções vitais do corpo”, explica o especialista. Quando usados por animais, os venenos são adaptados para atingir uma das duas funções vitais dentro do corpo – a circulação de sangue ou a comunicação entre nervos e músculos. Sua finalidade é ferir o músculo, deixar nervos dormentes ou parar a coagulação do sangue fazendo com que suas vítimas sangrem sem parar e deixando mais fácil a tarefa do predador de comer a sua presa.
Mas esses efeitos também têm um potencial benéfico, aliviando a dor ou a prevenindo a formação de coágulos de sangue, e estão no centro da busca de novos medicamentos para curar ou tratar males como ataques cardíacos ou doenças neurológicas. Segundo Takacs, o que os torna tão eficientes é que estes venenos têm como alvos as moléculas corretas dentro do corpo humano.
O campo como um todo se estende além das cobras letais, estudando também outros animais que produzem veneno, como sanguessugas, caracóis, escorpiões e lagartos. Já existe, por exemplo, um medicamento para dor crônica – ziconotide – baseado em uma toxina produzida pelo molusco Conus magus, o primeiro a ser desenvolvido a partir de um animal marinho. Há também a exenatida, substância extraída da saliva do monstro-de-gila, um dos poucos lagartos venenosos do mundo, que faz parte de uma nova classe de medicamentos e é usada no tratamento da diabetes tipo 2. No entanto, como as cobras atacam principalmente animais de sangue quente, seus venenos são mais efetivos para medicamentos de uso humano.
Até hoje, a FDA já aprovou sete medicamentos derivados de veneno de animais para tratar doenças que vão desde a hipertensão e outras doenças do coração até a dor crônica e diabetes. Mais dez estão em ensaios clínicos, e outros em estágios pré-clínicos, aguardando testes de segurança.
Encontrar um remédio num covil
A rota que vai do veneno ao remédio é longa e árdua. As novas drogas não são baseadas nos próprios venenos, mas em uma das muitas toxinas encontradas dentro deles. Conforme explica o professor Kini R. Manjunatha, que dá aula de ciências biológicas na Universidade Nacional de Cingapura, o veneno é um coquetel de toxinas naturais e pode conter de 20 até 100 toxinas diferentes. Ele e sua equipe trabalham com 70 a 100 venenos de cobra, dependendo de quanta “inovação” pode estar presente neles.
Quando descobre-se que um veneno tem um efeito benéfico sobre o corpo, ele é decomposto e suas toxinas constituintes são estudadas para identificar primeiro a sua estrutura e, em seguida, os receptores relevantes em células humanas nas quais elas agem.
Especificidade
A vantagem de explorar toxinas específicas é o quão seletivas elas são na hora de atacar seus alvos dentro do corpo, o que minimiza o potencial para efeitos colaterais indesejados. “Toxinas evoluíram durante milhões de anos para atingir um receptor específico”, afirma Manjunatha. Também é importante notar a sua potência, já que mesmo uma pequena quantidade pode ter efeitos fatais.
A equipe de Manjunatha está atualmente trabalhando com o veneno da cobra-real (a preferida dos encantadores de serpentes do sul da Ásia), a partir do qual eles isolaram uma toxina em particular com forte potencial como um tratamento para a dor crônica devido aos seus efeitos analgésicos sobre o corpo. A equipe manipulou a capacidade da toxina de agir sobre o sistema nervoso central para produzir um medicamento capaz de reduzir a sensibilidade à dor. Eles dizem que os seus testes em ratos mostraram efeitos analgésicos 20 vezes maiores do que a morfina e com zero efeitos colaterais até agora.
“Atualmente, um dos melhores [medicamentos] analgésicos disponíveis é a aspirina, [mas] tem efeitos colaterais. Para o uso crônico isso é um problema”, aponta o pesquisador.
Este estudo ainda está nas suas fases iniciais, já que até agora só foram realizadas análises em animais. Entretanto, depois de mais testes de segurança, eles esperam poder experimentar em breve em seres humanos.
Cura nas veias
Bem como analgésicos e tratamentos para outras doenças neurológicas, também estão sendo desenvolvidas novas drogas para acidente vascular cerebral, doenças cardiovasculares, câncer da próstata, HIV e esclerose múltipla.
“Nós estamos interessados nos venenos que se ligam às plaquetas”, garante o professor Bryan Fry, da Universidade de Queensland, na Austrália. As plaquetas são os componentes do sangue que o ajudam a coagular. A prevenção de coágulos sanguíneos desnecessários pode ajudar a evitar condições tais como ataques cardíacos. Os efeitos dos anticoagulantes também pode ser úteis durante cirurgias.
Fry está trabalhando com mais de 100 venenos de serpentes em seu laboratório para tentar impedir a coagulação do sangue – incluindo o da víbora cornuda rabo-de-aranha, endêmica do Irã. “É potente, mas muito preciso”.
O mecanismo por trás do veneno ainda precisa ser compreendido, mas Fry vê o seu potencial porque a toxina necessária no interior do veneno é pequena em tamanho, o que torna menos provável que ela seja reconhecida pelo sistema imunitário do organismo quando utilizada. Assim, as chances são menores de que o organismo ataque a substância, diminuindo o risco de uma reação alérgica.
Depois de identificada, os próximos passos são entender como ela funciona e, em seguida, projetar uma versão sintética para ser usada na medicina. Para o cientista, se possível, o objetivo é transformá-la em uma pílula – o que por si só traz o desafio de fazer a droga sobreviver aos ácidos do sistema digestivo para que possa ser absorvida e realize a sua tarefa.
Além da mordida
Como é de se esperar, esse tipo de trabalho de pesquisa não é nem um pouco livre de riscos. A determinação de Fry, entretanto, continua firme e forte, apesar de ele ter enfrentado a ira de serpentes nervosas em várias ocasiões. Ele já levou, até hoje, 24 picadas de cobra, incluindo a da víbora iraniana, cujo veneno está nas raízes de seu mais recente medicamento. “Eu sangrei pelo meu olho”, lembra ele.
Certa vez, a picada de um escorpião deixou seu coração parando a cada 30 segundos, até que ele foi tratado. Mesmo assim, o cientista aventureiro resolveu subir de nível e enfrentar também o desafio de trabalhar com dragões de Komodo.
Fry ainda vai a campo para “ordenhar” cobras e obter seu veneno. A técnica envolve fazer com que elas mordam um material colocado sobre a abertura de um frasco que capta seu veneno. “O veneno das serpentes é o mais fácil de ser obtido”, diz.
Embora sua pesquisa também permaneça nos estágios iniciais de desenvolvimento, Fry está esperançoso de que um de seus muitos estudos atuais resulte em algo que beneficiará a humanidade, mas sabe que novos medicamentos requerem tempo.
“Leva de sete a 25 anos para desenvolver um medicamento uma vez que você identifica uma toxina”, conta Takacs, cujo banco de toxinas é uma ferramenta para pesquisadores usarem como uma biblioteca para ver como toxinas trabalham. “As pessoas sempre vão vai ficar doentes, então você precisa de novas curas. Cobras e outras criaturas podem lhe dar este medicamento”. Atualmente, vinte milhões de toxinas permanecem inexploradas na natureza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário