Pelos primeiros três meses de minha vida, sobrevivi apenas com leite materno. É bastante provável que você também tenha.
Alimentar bebês com leite é algo tão universal que é difícil imaginar o que a vida seria se não fizéssemos. Mas na natureza, o leite não é universal. Grupos inteiros de animais – pássaros, por exemplo – não o produzem e ainda assim sobrevivem sem problemas.
Sendo assim, como e por que o leite surgiu? Quando cientistas começaram a investigar sua história evolucionária, eles descobriram que o leite é mais velho do que imaginamos.
O leite data de centenas de milhões de anos, da época em que os primeiros animais pisaram em terra firme. Mas o leite naquela época não era nada parecido com o que você hoje derrama sobre o cereal de café da manhã.
Origens
O leite e as mamas tornaram-se elementos estrelares no século 18, quando o biólogo sueco Carolus Linnaeus começou a catalogar espécies em grupos com base em características únicas.Alguns grupos não sobreviveram ao escrutínio da ciência, mas um deles segue firme e forte. Linnaeus percebeu que diversos animais, incluindo humanos, lactam. E que suas fêmeas usam leite de suas glândulas mamárias para alimentar seus filhotes.
O sueco classificou esses animais como mammalia, o que em latim significa “dotados de seios”. Hoje em dia, chamamos esses animais de mamíferos.
Algumas focas produzem leite com mais gordura que o mais rico sorvete. Baleias e golfinhos amamentam. Morcegos produzem leite, assim como gatos, cachorros e humanos. Essa regra se estende até para alguns dos mais primitivos mamíferos, que não dão à luz filhotes vivos. Os monotremos, como o ornitorrinco e a équidna, põem ovos. Mas têm glândulas mamárias e produzem leite.
O mesmo se dá com marsupiais, como cangurus e gambás. Eles dão à luz a filhotes que vivem e uma bolsa acoplada à mãe. Lá, sugam seu leite. Ou seja, leite e amamentação são únicos aos mamíferos, mas não está claro como isso aconteceu ao longo do tempo.
É difícil estudar a evolução da amamentação. Ao contrário de ossos, glândulas mamárias não fossilizam. “É dificílimo coletar qualquer dado pré-histórico sobre glândulas mamárias”, explica Peter Hartmann, da Universidade da Austrália Ocidental, em Perth.
Sendo assim, os cientistas buscaram respostas em outro lugar: o DNA. Eles estudaram os genes de animais que produzem leite, comparando a composição do líquido e examinando os métodos reprodutivos dos animais.
Tais estudos levaram Olav Oftedal, do Instituto Smithsonian de Pesquisa Ambiental, nos EUA, a desenvolver a tese de que glândulas mamárias já tinham sido desenvolvidas antes de os primeiros animais caminharem na Terra.
“Embora hoje consideremos a lactação uma característica única aos mamíferos, creio que as glândulas mamárias têm uma origem bem mais antiga”, diz Oftedal.
O pesquisador vê as origens nos primeiros animais a deixarem as águas. Alguns deles evoluíram para amniotes: animais com coluna vertebral e quatro patas e que eventualmente originaram répteis, pássaros e mamíferos.
Assim como seus ancestrais aquáticos, amniotes punham ovos. Tais ovos, porém, adaptaram-se a sobreviver fora d’água. Tinham cascas fibrosas e porosas e membranas permitiam trocas entre oxigênio e dióxido de carbono entre o embrião e o ambiente.
Mas havia o problema de que a porosidade deixava os ovos à mercê do clima. Se a temperatura aumentasse muito ou se chovesse pouco, os ovos poderiam rapidamente secar. Os amniotes precisaram criar uma solução para proteger as crias.
Ancestrais de répteis e pássaros desenvolveram cascas de ovos duras, calcificadas e à prova d’água, assim como os ovos de galinha. Esses ovos tendiam a perder bem menos umidade. Porém, os ancestrais dos mamíferos continuaram a por ovos porosos. Em vez de produzir cascas mais duras, segundo Oftedal, esses animais usaram a porosidade para transferir água e nutrientes para dentro dos ovos.
O pesquisador acredita que os amniotes usavam glândulas para secretar os líquidos. E que seria fácil para os filhotes se alimentarem dessas secreções mesmo depois de os ovos chocarem. Sapos oferecem uma pista de como isso funcionaria. Alguns desses anfíbios, como o Eleutherodactylus coqui, põem ovos em terra firme e transferem água para eles por meio de contato direto com o corpo ou secreções. As fêmeas da cobra cega (Siphonops annulatus), desenvolvem na superfície da pele diversos depósitos gordurosos que filhotes raspam com dentes.
Para Oftedal, isso é uma forma primitiva de amamentação. E que, de alguma forma, essas secreções se transformaram no leite que hoje conhecemos. Isso porque os filhotes teriam passado a buscar mais os nutrientes secretados pelas glândulas maternas do que os depositados nas gemas dos ovos.
Leite 'alternativo'
E as glândulas simplórias podem ter evoluído para as mamárias modernas. As secreções aquosas deixaram de ser simples umidificadoras para ganhar substancias químicas mais úteis até que se transformassem na principal fonte de alimentação para recém-nascidos. Oftedal diz que isso ocorrer antes mesmo do aparecimento de mamíferos “completos”.Seu argumento é sustentado pela história genética de mamíferos e ancestrais. Muitos componentes do leite têm origens remotas. Sabemos disso porque muitos genes ligados ao leite são mais velhos que os mamíferos que os carregam. A caseína, a mais abundante proteína no leite de mamíferos, é um exemplo. Elas auxiliam o transporte de nutrientes como cálcio e fósforo para os filhotes, contribuindo para o crescimento de esqueletos e tecidos.
Cientistas já descobriram que todos os mamíferos têm aglomerados genéticos altamente organizados, e que contam com os três principais tipos de caseínas. Disso, pode-se deduzir que as caseínas são muito antigas e, segundo Oftedal, se ramificaram nos três tipos principais que conhecemos hoje, muito antes de os ancestrais dos mamíferos se diversificarem em monotremos, marsupiais e placentários.
Os pesquisadores também descobriram como os mamíferos ficaram menos dependentes dos nutrientes da gema dos ovos. Há cerca de 170 milhões de anos, um importante tipo de proteína da gema, a vitelogenina, começou a desaparecer, de acordo com um estudo de 2008.
Isso novamente ocorreu em uma época anterior à em que mamíferos chegaram a terra firme. Todos os pássaros e répteis contemporâneos contam com três genes associados à produção de vitelogeninas. Ancestrais ovíparos dos mamíferos também tinham três genes.
Mas, entre os mamíferos modernos, apenas os monotremos têm algum gene funcional ligado à vitelogenina, ao lado de dois inativos. Em marsupiais e placentários, os genes estão “desligados”.
Os mamíferos apenas teriam feito isso se houvesse substitutos à mão. Uma fonte alternativa de nutrientes, como a caseína. Se as proteínas da gema começaram a desaparecer antes do surgimento dos mamíferos, isso sugere que o leite já era a fonte principal de nutrição para os ancestrais ovíparos.
E a composição do leite já teria sido definida antes da evolução dos mamíferos. “Mas mesmo depois de os mamíferos evoluírem e tomarem diferentes rumos como grupo, o leite continuou a mudar, ainda que em termos de proporção de sua fórmula”, explica Oftedal.
Mas se a produção de leite é uma habilidade tão velha, por que apenas a vemos em mamíferos hoje?
A explicação mais simples é que as linhagens pré-mamíferas se extinguiram. Mas Oftedal alerta que há casos de animais de outros grupos que produzem algo parecido com leite. Alguns tipos de barata produzem um líquido rico em proteínas para alimentar embriões. Alguns pássaros, incluindo pombos e pinguins, têm bolsas perto de suas gargantas repletas de um liquido proteico leitoso – machos inclusive. O líquido é regurgitado nas bocas dos filhotes.
Essas substâncias são usadas da mesma maneira que o leite, mas diferem em fórmula e maneira como são produzidas. O leite “verdadeiro”, produzido por glândulas mamárias, é exclusivo dos mamíferos. Só que mesmo entre os mamíferos as espécies produzem leite de maneiras diferentes.
Segundo Oftedal, os mamilos seriam uma resposta da evolução para evitar infecções. Em monotremos, por exemplo, o leite fica em contato com a pele, e o produto pode ser colonizado por bactérias. Isso pode afetar tanto mãe quanto filhote. Mamilos permitem a transferência direta de leite das glândulas mamárias para as bocas dos filhotes.
Mas a lactação também difere entre espécies com mamilos. Filhotes de animais placentários recebem nutrientes adicionais ainda no ventre por causa da placenta. Isso permite com que fiquem na barriga das mães por mais tempo que marsupiais, por exemplo, que dependem quase inteiramente do leite materno para sobreviver. Por isso, mamães marsupiais lactam por um longo tempo.
A amamentação é uma experiência emocional tão forte que é fácil para nós esquecermos que não é um ato exclusivo de humanos.
- Leia a versão original dessa reportagem (em inglês) no site BBC Earth
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