terça-feira, 11 de agosto de 2015

Crônica: A SECA DE 2015 - Por: Rangel Alves da Costa * Fonte: BRASIL ESCOLA


Deve ser um segredo guardado a sete chaves pelos centenários sertanejos que ainda habitam naquela região, mas muitos comentam ao pé do ouvido que há, com certeza, uma profecia sertaneja preconizando que a cada cem anos uma devastadora estiagem irá assolar todas as redondezas. A seca viria destruindo e secando tudo, tangendo da vida animais e plantas, amedrontando o homem mais destemido e demonstrando todas as fragilidades dos viventes diante das forças revoltosas da natureza. Isto estava escrito num pedaço de umburana, guardado dentro de um alforje carcomido e escondido numa gruta nas proximidades da divisa entre Canindé e Poço Redondo. Conto assim porque assim me contaram.
Pois bem. Outro dia dois velhos amigos iam conversando por uma estrada e começaram a prosear sobre o assunto, e foi quando um deles parou subitamente e disse espantado: “Danou-se cumpade, pois se dizem que uma das maiores secas foi a de 1915, a quem vem aí vai ser em 2015, que é quando completa cem anos. Pelas conta, daqui a uns cinco anos ou coisinha mais”. E seguiram caminho acima, visivelmente preocupados, sem trocar mais nenhum pé de palavra.
Com efeito, a seca de 1915 foi uma das mais terríveis que já se espalhou pela região nordestina. Foi a inclemência da devastação de tudo acima e abaixo da terra, do desespero do homem e da dizimação dos rebanhos, da fome e da sede alastradas em progressão alarmante, das muitas e muitas levas de retirantes abandonando seus lugarejos já quase mortos como o próprio homem. Foi nessa estiagem que, para impedir que os retirantes se dirigissem à capital, o governo cearense criou campos de concentração nos arredores das grandes cidades, nos quais recolhia os flagelados. A varíola fez centenas de mortos no Campo do Alagadiço, próximo a Fortaleza, onde se espremiam mais de 8 mil pessoas; a falta de condições sanitárias e de comida completou o trágico quadro. O sofrimento das famílias durante essa estiagem é retratado por Rachel de Queiroz no seu romance “O quinze”, um drama instigante impondo situações dolorosas em meio à desolação provocada pela seca.
Nos dias atuais, a catastrófica previsão estava novamente prestes a acontecer no semi-árido. “De cem em cem anos virá um sol diferente dos outros, mais quente, mais abrasador e mais duradouro, e tudo o que estiver abaixo dele, seja homem, seja animal ou planta, se curvará em piedade e aflição, pois não haverá sequer uma gota d’água caindo dos céus para aliviar o sofrimento da estiagem, e tudo será seco e feio”, eis a profecia.
Em 2014 começaram a aparecer os primeiros sinais. Nesse ano, a chuva tão esperada no dia 19 de março não veio, muito menos avistava-se qualquer aparência de nuvens carregadas no horizonte.O sertanejo acredita que se chover nesse dia – dia de São José – é sinal de que haverá um bom inverno. Com os dias passando e as chuvas sumindo, o matuto começou logo a desconfiar de que o pior certamente viria.
Já perto do fim do ano, lá pelas vizinhanças do natal, Pedro, pai de cinco filhos pequenos, enfileirados na idade, dono de quatro vaquinhas num terreno de beira de estrada, madrugou com uma tristeza de dar dó e, após mirar o céu iluminado, decidiu buscar uma esperança numa prática muito antiga dos velhos sertanejos: procurou um ninho de rolinha pelas árvores, mas nada; só encontrou um escondido no chão. Então veio a certeza: “A rolinha sempre faz o ninho atrepado, mas como ela sabe que não vem chuva, ela faz no chão. É certeza de estiagem prolongada”.
Dito e certo, pois quando entrou o ano de 2015 a seca já começou a mostrar sua feição assustadora. A cada dia que passava as esperanças iam esvaindo-se, os tanques e cacimbas começaram a enlamear, os pastos ficaram cinzentos, os animais emagreciam e deixavam suas carcaças pelos barrancos, veio a fome, a sede, o medo. Era a seca em toda sua plenitude. João e Maria venderam tudo o que restava e foram embora desnorteados; encontraram Belarmino caído, morto, por cima da carcaça da única vaquinha que tinha; de tanto ouvir seus filhos reclamar que tinham fome, Pedro enlouqueceu e invadiu uma prefeitura, sendo preso e judiado; as ruas das cidades encheram-se de pedintes esfarrapados; ninguém mais falava de rico e de pobre. Era a socialização da miséria.
O governo federal logo criou um fundo especial de emergência para combater os problemas causados pela devastação nordestina; mais uma vez foram surgindo frentes emergenciais de trabalho para dar algum ganho ao homem carente de tudo; programas de bolsa disso e bolsa daquilo foram criados ou ampliados para atender às demandas das famílias empobrecidas; da capital, caminhões e mais caminhões chegavam com as esmolas oficiais, com o mesmo fubá de milho, feijão turbinado de veneno, arroz de quinta categoria, mortadela e alguns itens mais para enganar a fome, e principalmente o próprio homem. Políticos não arredavam o pé do lugar, pois dizem que o homem fragilizado é mais fácil de ser enganado.
Porém, diante desse quadro dantesco surgiu, enfim, uma coisa boa, uma solução para resolver dali por diante, e de uma vez por todas, as constantes ocorrências daqueles mesmos problemas: o governo federal, em parceria com os governos estaduais, já tinha um projeto pronto, de confiável eficácia, para dar um basta nas conseqüências maléficas das estiagens. Já tinha até nome: Qualidade de Vida no Convívio com a Seca. Nome bonito, assinado com caneta de ouro. No início do próximo ano, com a máxima certeza, passaria a ser desenvolvido na região.
Alguém já ouviu falar dessa mesma história? Pois é, ainda no período do Brasil Império, o Imperador Pedro II prometeu que venderia até as jóias da Coroa para resolver o problema das secas. Nem vendeu nem o problema jamais foi resolvido, mas não por falta de promessas, pois a cada nova estiagem os políticos e governantes vêm com a mesma ladainha, com a mesma conversinha de que dali em diante o sertanejo vai conviver com a seca de forma digna e proveitosa. Tudo conversa pra boi dormir, ou fechar os olhos de morte nos pastos sertanejos.
É sempre a mesma história. E assim sempre será daqui a mais cem, duzentos, trezentos anos, pois a profecias não mentem, mas os homens sim. 

Por: Rangel Alves da Costa

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