quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Testamento de um Cão



Minhas posses materiais são poucas e eu deixo tudo para você...

Uma coleira mastigada em uma das extremidades, faltando dois botões, uma desajeitada cama de cachorro e uma vasilha de água que se encontra rachada na borda.

Deixo para você a metade de uma bola de borracha, uma boneca rasgada que você vai encontrar debaixo da geladeira, um ratinho de borracha sem apito que está debaixo do fogão da cozinha e uma porção de ossos enterrados no canteiro de rosas ou sob o assoalho da minha casinha.

Além disso, eu deixo para você as memórias, que, aliás, são muitas.

Deixo para você a memória de dois enormes e meigos olhos marrons, de uma caudinha curta e espetada, de um nariz sempre molhado e das choradeiras atrás da porta.

Deixo para você uma mancha no tapete da sala de estar junto à janela, quando nas tardes de inverno eu me apropriava daquele lugar, como se fosse meu, e me enrolava feito uma bolinha para pegar um pouco de sol. (Mas não manchava de propósito.)

Deixo para você um tapete esfarrapado em frente de sua cadeira preferida, o qual nunca foi consertado com o tipo de linha certo.... isso é verdade. Eu o mastiguei todinho, quando ainda tinha cinco meses de idade, lembra-se?

Deixo para você um esconderijo que fiz no jardim debaixo dos arbustos perto da varanda da frente, onde eu encontrava asilo durante aqueles dias de forte verão. Ele deve estar cheio de folhas agora e por isso talvez você tenha dificuldades em encontrá-lo. Sinto muito!

Deixo também, só para você, o barulho que eu fazia ao sair correndo sobre as folhas de outono, quando passeávamos pelo bosque.

Deixo ainda, a lembrança de momentos pelas manhãs, quando saíamos junto pela margem do riacho e você me dava aqueles biscoitos de baunilha.

Recordo-me das suas risadas debochadas, porque eu não consegui alcançar aquele coelho impertinente.

Deixo-lhe como herança minha devoção, minha simpatia, meu apoio quando as coisas não iam bem, meus latidos quando você levantava a voz aborrecido... e minha frustração por você ter ralhado comigo.

Eu nunca fui à igreja e nunca escutei um sermão. No entanto, mesmo sem haver falado sequer uma palavra em toda a minha vida, deixo para você o exemplo de paciência, amor e compreensão.

Talvez, (modéstia à parte) sua vida tenha sido um pouco mais alegre, porque eu estive ao seu lado! Agora, já velhinho, quando tenho que me despedir definitivamente, desejo, sinceramente, que encontre um substituto à minha altura. Eu lhe deixei alguns herdeiros, dos quais você teve que se desfazer por falta de condições de cuidar de mais de um. Pode ser que consiga algum deles de volta, ou, pelo menos, uma terceira geração. Eu garanto que provêm "de boa família".

Mas, se sua dor for tanta a ponto de não poder agüentar outra separação semelhante, eu compreenderei, saberei que não considerou "um alívio livrar-se de mim".

Com a esperança de que você tenha podido me entender, olhando-me nos olhos, enquanto me acompanha nesses meus últimos momentos, apesar de estar com os seus olhos completamente molhados, embora os meus não estejam, porque os cães sofrem mas não derramam lágrimas, peço-lhe desculpas por tudo que possa ter feito que o tenha aborrecido, e por não conseguir mais força para continuar a seu lado.

ADEUS, meu maior amigo!

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