segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Serpentes acuadas


Jararaca-ilhoa, da ilha de Queimada Grande (foto: Eduardo Cesar)




Depois de quatro anos organizando uma rara síntese de informações produzidas durante muitas décadas de trabalho de campo, o biólogo Cristiano Nogueira pode finalmente dizer: “Agora conseguimos ver de modo claro que a principal ameaça às serpentes do Brasil é uma dramática perda de vegetação nativa, que é também a causa de outros problemas, como essa seca em São Paulo”. Como pesquisador do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), ele coordena um extenso mapeamento, comparando a distribuição geográfica atual e passada das serpentes brasileiras. Os resultados preliminares indicam que algumas espécies perderam até 80% da área de floresta ou campos que ocupavam três décadas atrás. A perda de espaço – associada à expansão das cidades e da agropecuária, como também se passa com outras espécies – implica o desaparecimento de evidências da história evolutiva não apenas das cobras, mas também de outros grupos de seres vivos, que se formaram e ocuparam seus espaços ao longo de milhões de anos.

Nogueira espera concluir em 2016 os mais de mil mapas que delimitam com precisão esse problema ao comparar as áreas ocupadas hoje e no passado pelas 380 espécies encontradas no Brasil. É a maior diversidade de serpentes do mundo, incluindo as minúsculas e inofensivas cobras-cegas, as jararacas, cascavéis, corais verdadeiras e falsas, até as maiores, como a jiboia e a sucuri, de até 10 metros de comprimento. De acordo com os mapas já prontos, 22 espécies são exclusivas – ou endêmicas – de trechos da caatinga e outras 80 da mata atlântica. “Estamos descobrindo as áreas de endemismo e ao mesmo tempo vendo que as estamos perdendo”, observa Nogueira, à frente de uma equipe de 25 especialistas do Brasil e dois da Argentina.

A Bothrops itapetiningae, a menor entre as jararacas, com 40 a 60 centímetros de comprimento – os machos têm cauda mais longa, enquanto as fêmeas têm uma cabeça maior —, deve ocupar hoje apenas 20% da área original de há 30 anos, que se estendia pelos campos e cerrados desde São Paulo até o centro de Goiás e foi intensamente ocupada por plantações ou cidades. “O desmatamento chegou até as bordas do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso e Pará, e do Parque Nacional das Emas, em Goiás”, observa Nogueira. “As perdas cresceram muito desde que comecei esse levantamento, em 2010, e agora avançam sobre a floresta amazônica.”


© THESAURI/ ALBERTUS SEBA


Os primeiros registros de serpentes do Brasil: a papa-pinto em um livro de 1734 publicado na Alemanha…

Outra espécie acuada é a jararaca-de-murici (Bothrops muriciensis), encontrada apenas em matas de altitude superior a 400 metros em uma estação ecológica no município de Murici, em Alagoas. Marco Antonio de Freitas, pesquisador do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que coordenou o trabalho de campo com essa espécie, viu que o desmatamento é intenso por lá, mesmo em áreas protegidas por lei. Não é o único problema. “Nas regiões Norte e Nordeste ainda não existe um trabalho educativo eficaz, que coíba a matança de serpentes peçonhentas. O máximo que se consegue é que os moradores não matem as que eles mesmos reconhecem como inofensivas”, disse ele. Ali e em outros lugares, a maioria das pessoas prefere matar esses bichos, por causa do medo e do asco que despertam, embora a minoria das espécies seja venenosa. Em um estudo de 2014, Freitas relatou que a jaracuçu-tapete (Bothrops pirajai) vive apenas em fragmentos de mata atlântica do sul da Bahia, sob as mesmas ameaças.

Uma visão mais ampla revela um paradoxo: a região mais povoada do país – do sul de Minas Gerais até o sul de Santa Catariana – apresenta a maior riqueza (número de espécies) e diversidade filogenética (linhagens) de serpentes, por causa da variedade de formas de vegetação e de relevo. É nessa área que houve mais coletas, o que facilita a identificação de espécies novas. Em um levantamento na serra de Paranapiacaba, na Grande São Paulo, a bióloga Vivan Trevine, do MZ-USP, encontrou 16 espécies de cobras e 80 de anfíbios, uma boa amostra da diversidade de vida silvestre de todo o estado. Há também áreas ricas em espécies e em linhagens ainda pouco percorridas por biólogos, como as matas e cerrados da chapada de Parecis e serra de Ricardo Franco, no oeste de Mato Grosso, e nas regiões norte e central dos Andes (ver mapas).

Muitos anos de silêncio
“Estamos reunindo informações que começaram a ser coletadas há 250 anos”, diz Nogueira. O botânico e zoólogo Carl von Linné, Lineu, foi quem apresentou em 1758 uma das primeiras descrições de uma serpente do Brasil, uma jiboia. “Ver como as cobras se distribuem espacialmente é uma forma de entender a formação e a evolução dos ambientes naturais”, afirma Nogueira. “Se entendermos o que gerou a diversidade das serpentes, talvez seja possível concluir o que se passou também em outros grupos de animais.”


© ICONOGRAPHIE GÉNÉRALE DES OPHIDIENS/GIORGIO JAN E FERDINANDO SODELLI


… e a jiboia (cobra maior), em um livro de 1864 publicado na Itália

Os mapas estão sendo construídos a partir de cerca de 100 mil registros de coletas de espécies, “todos verificados por pelo menos um especialista”, assegura Nogueira. Foi um trabalho lento e meticuloso. Thais Guedes, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Fausto Barbo, da USP, passaram anos examinando os animais e as etiquetas de identificação de dezenas de coleções zoológicas do Brasil – ela com os bichos da caatinga e ele, da mata atlântica – e de outros países. “Havia muita informação, mas espalhada, desorganizada, com erros que tiveram de ser corrigidos”, diz Ricardo Sawaya, da Unifesp. Ele e Barbo examinaram jararacas da ilha de Santa Catarina no museu Koenig, em Bonn, na Alemanha, coletadas pelo zoólogo alemão Paul Müller entre 1960 e 1970. Em silêncio, trazendo à tona informações para estudos como esse, trabalha também o técnico do Butantan Valdir José Germano, há cinco anos dedicado à paciente recuperação de cobras queimadas e suas etiquetas de identificação chamuscadas pelo incêndio que destruiu a maior parte de uma coleção de mais de 80 mil amostras do instituto, em 2010.

Desde 2012 os pesquisadores fornecem informações sobre a distribuição geográfica das espécies para a lista de espécies ameaçadas, divulgada pelo ICMBio em novembro de 2014. Otavio Marques, biólogo do Butantan que trabalha há 30 anos com distribuição geográfica e história natural de espécies da mata atlântica do litoral paulista, comemora o fato de as informações sobre cobras e outros grupos de animais terem sido usadas na elaboração das Diretrizes para conservação e restauração da biodiversidade do estado de SP, documento publicado em 2008 com o propósito de reconhecer e proteger as áreas de vegetação nativa com elevada concentração de espécies diferentes de animais e plantas. “Já criaram unidades de conservação em São Paulo com base nesses mapas”, ele diz.

As ilhas das cobras
As ilhas e as matas do litoral brasileiro estão se revelando um autêntico ninho de jararacas: cada lugar parece ter suas próprias espécies ou ao menos variedades únicas de uma mesma espécie. Nas árvores da ilha de Queimada Grande – e apenas lá –, vivem centenas de jararacas-ilhoa, de cerca de 1 metro de comprimento, com um veneno que lhes permite matar pássaros em segundos. A ilha dos Alcatrazes, a cerca de 30 quilômetros (km) de distância, abriga outras centenas de jararacas-de-alcatrazes, de meio metro de comprimento, que se alimentam quase exclusivamente de centopeias. Agora aparece outra espécie, a Bothrops otavioi, que come sapos e por enquanto foi vista apenas em um lugar, as matas da ilha Vitória, no município-arquipélago de Ilhabela. Uma candidata a nova espécie de jararaca vive na ilha vizinha de Búzios e outra desliza ainda anônima em uma ilha mais ao norte, no litoral do Espírito Santo.

Para os pesquisadores, encontrar novas espécies gera sensações contraditórias como a alegria de quem chega a uma festa e logo se decepciona ao ver que o encontro está acabando. “Apresentamos as espécies como novas e já as classificamos como ameaçadas de extinção, por causa do alto risco de perda das áreas de matas nativas em que vivem”, diz Sawaya. Ele participou da caracterização da jararaca da ilha Vitória e trabalha na descrição da possível espécie nova da ilha vizinha de Búzios, ambas habitadas por famílias de caiçaras, cujas casas avançam sobre as matas nativas.

Os pesquisadores acreditam que as ilhas do litoral podem abrigar variedades únicas de seres vivos em consequência do isolamento geográfico causado pelo recuo do nível do mar, um processo concluído há cerca de 10 mil anos que pode ter favorecido a formação de novas espécies. Ainda haveria muito a ser descoberto porque “o estado de São Paulo tem mais de 100 ilhas e o Rio de Janeiro, mais de 300, a maioria ainda com poucos levantamentos biológicos”, diz Sawaya. É provável que não seja fácil encontrar os bichos. “Serpente é um bicho ingrato para estudar, em geral não se acha fácil”, observa Marques, “mas em Queimada Grande dá para ver de 10 a 15 jararacas por dia. Em Alcatrazes, de cinco a 10”. Estima-se que de 2 mil a 3 mil jararacas vivam em cada uma dessas ilhas.

Espécies novas de serpentes podem ser encontradas até mesmo em matas urbanas. Pesquisadores de São Paulo, Goiânia e Belém apresentaram em 2014 uma espécie nova de coral verdadeira, a Micrurus potyguara, encontrada em João Pessoa, na Paraíba. Com base em registros do Butantan de 2003 a 2007, Barbo verificou que os fragmentos de mata atlântica do município de São Paulo abrigavam 38 espécies diferentes. As mais frequentes eram outra falsa-coral, a jararaca-dormideira, uma inofensiva comedora de lesmas, e a jararaca-da-mata, venenosa, de corpo marrom com manchas triangulares escuras.


© EDUARDO CESAR

Trabalho de base no Butantan: Valdir Germano reorganiza o acervo atingido pelo incêndio de 2010…

Conhecer e perder
“Se não agirmos agora, em 20 anos não haverá mais nada para preservar”, alerta Nogueira. “Muitas áreas que visitei há 15 anos em Goiás, Mato Grosso e Bahia não existem mais, foram tomadas pela agricultura.” Em 1997, ainda como estudante de biologia em São Paulo, ele saiu pela primeira vez para fazer o resgate de animais em uma área de cerrado que seria coberta pelo reservatório da hidrelétrica de serra da Mesa, em construção no nordeste de Goiás. Apesar do ceticismo dos colegas – o cerrado é ainda visto como uma região de baixa diversidade biológica –, Nogueira encontrou “uma riqueza estupenda de lagartos e serpentes”, já que se tratava de uma região de contato entre a floresta amazônica e áreas de planalto do Brasil Central.

“Foi o que chamei de paradoxo da serra da Mesa: conhecer no momento da perda. Foi assim também em outros lugares, e também com peixes e outros grupos de animais”, diz ele. “Ainda dependemos desses eventos de grande destruição, como agora em Belo Monte e Jirau, no norte do país, para conhecer a diversidade biológica de um lugar. Agora temos os bichos, identificados e conservados em museus, mas não mais os espaços em que viveram. Temos de fazer mais inventários biológicos planejados em regiões íntegras, como os parques e reservas, ainda quase desconhecidos.”

O biólogo Hussam Zaher, pesquisador e ex-diretor do Museu de Zoologia, viveu a mesma situação em 2014, ao descobrir um gênero e uma espécie nova de uma serpente coletada nas matas que serão cobertas por outro reservatório da região amazônica. Outro exemplar dessa serpente foi capturado em outra área, a 150 quilômetros de distância, que também será coberta pelas águas de uma hidrelétrica.

Com seu grupo, ele trabalha em análises genéticas e moleculares de 1.200 espécies de serpentes da América do Sul para estabelecer a origem e a filogenia – a árvore genealógica – desse grupo de animais. “As cobras são lagartos modificados, que perderam as patas ao longo da evolução, mas ainda não sabemos de que grupos de lagartos as cobras podem ter se originado”, diz ele. As análises dos dados devem começar ainda no primeiro semestre de 2015. Os resultados preliminares, com apenas 12 genes, indicaram que as jararacas das ilhas e do continente não se diferenciam geneticamente e, portanto, poderiam ser a mesma espécie, apenas com variações morfológicas. “Estamos refazendo as análises, com amostras maiores de DNA”, afirma Zaher.


© EDUARDO CESAR

… e Selma Almeida Santos e Juliana Passos medem jararacas-ilhoa criadas em laboratório

Diante de militares
Convencer a população e autoridades sobre a necessidade de preservação desses bichos não é fácil. Não basta dizer que, sem as cobras, haveria mais sapos e ratos nas matas e nas cidades. Nem que existem seres de hábitos únicos, como aRhachidelus brazili, uma cobra preta que só come ovos e vive em áreas de campos nativos cada vez menores do cerrado, ou espécies que poderiam representar uma região – a jararaca-da-seca (Bothrops erythromelas), avermelhada, “é a caatinga em forma de serpente, só vive na vegetação baixa e no pé de serras”, diz Nogueira.

O cirurgião mineiro Rodrigo Souza resolveu agir, comovido com a redução da vegetação nativa e com atropelamentos de cobras nas estradas do sul da Bahia. Em 2001 ele comprou um sítio em Itacaré e fez um serpentário para criar surucucus (Lachesis muta), a maior cobra venenosa das Américas, cada vez menos vista na região. As cobras são mantidas em viveiros em um espaço cercado por muros de 3 metros de altura e 50 centímetros de profundidade, para impedir a passagem de tatus, uma exigência de órgãos ambientais. Souza, que trabalha com pesquisadores de São Paulo e de Minas Gerais, anunciou em 2007 a primeira reprodução em cativeiro de surucucus de mata atlântica, antes classificada em extinção.

Em uma reunião em Brasília no início de 2013, Marques, do Butantan, pediu para os militares da Marinha pararem de realizar exercícios de tiro nas rochas da ilha dos Alcatrazes. Os tiros, ele argumentou, causavam incêndios que poderiam reduzir as populações de jararacas e a Marinha poderia ser responsabilizada. “Os militares aceitaram parar os exercícios em Alcatrazes”, conta. Em outro encontro ele usou um argumento utilitarista, perguntando qual dos militares e políticos à sua frente tinha hipertensão. Vendo os braços erguidos, ele lembrou que um medicamento hipertensivo bastante usado, o Captopril, foi desenvolvido a partir do veneno da jararaca do continente (Bothrops jararaca).

Marques alerta que, se perdessem a espécie de Alcatrazes, “perderemos uma fonte potencial de novos medicamentos”. Poderia haver outras possibilidades porque, como se viu no Butantan, o veneno dessa espécie contém três proteínas específicas, diferentes das encontradas no veneno da jararaca do continente, que se alimenta basicamente de pequenos mamíferos e não de centopeias como a jararaca-de-alcatrazes.

Os primeiros exemplares da outra jararaca de ilha, a ilhoa, chegaram ao Butantan em 1911, enviados por Antonio Esperidião da Silva, um morador da ilha de Queimada Grande. Afrânio do Amaral, pesquisador e um dos diretores do instituto, ficou intrigado ao ver penas entre as fezes das cobras (ainda não se conhecia nenhuma jararaca que comesse aves) e visitou a ilha várias vezes. Depois emergiu um problema novo, o contrabando de cobras. “Alunos nossos receberam ofertas para trazer bichos de Queimada Grande”, conta Marques.

Em 2010, com sua equipe, ele trouxe 20 cobras de Queimada Grande e pediu à bióloga Selma Almeida Santos: “Cuide delas como se fossem seus filhos”. Selma, com sua equipe, estudou a viabilidade dos espermatozoides e o ciclo hormonal das fêmeas para ver o melhor momento de promover os encontros entre os casais. Os acasalamentos deram certo e nasceram 25 filhotes. Quatro anos depois, as cobras ainda são mantidas em caixas plásticas em um dos laboratórios do Butantan, mas devem viver novas experiências em breve. “O próximo passo é soltá-las em uma área com mata, para que possam viver e se reproduzir sem nossa assistência, e depois começar o mesmo trabalho com outras espécies ameaçadas”, diz Marques. “Já trouxemos quatro jaracaras-de-alcatrazes.” Em alguns anos ele saberá se a estratégia deu certo com essa outra habitante das ilhas e se poderia ser adotada para recuperar as populações de outras espécies ainda não perdidas.


Por Carlos Fioravanti

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