sábado, 29 de agosto de 2015

A reintrodução de animais silvestres nos seus hábitats naturais



A vontade de qualquer pessoa que se depara com um animal silvestre vítima de maus-tratos ou apreendido em ações de tráfico é devolvê-lo, o mais rápido possível, para a natureza. Mas o que muitos não sabem é que esta não é a melhor atitude a se tomar. Nem para o animal e nem para o meio ambiente. O trabalho de levar fauna de volta a seu hábitat natural consiste na reintrodução, que por sua necessária complexidade técnica e científica deve ser feita por especialistas e passa a ser um instrumento de conservação da biodiversidade do ambiente que está recebendo o animal.

“Animais de cativeiro ou apreendidos no tráfico não podem ser simplesmente soltos na natureza; essa ação aleatória pode causar danos para a conservação do ambiente e o manejo da espécie e, por exemplo, pode ocorrer mistura de populações com incompatibilidades genéticas” explica o biólogo da Universidade Estadual do Maranhão Tadeu G. de Oliveira, coordenador do Programa de Reintrodução de Felinos do Instituto Pró-Carnívoros, membro do grupo de Especialistas em Felinos da IUCN (The World Conservation Union) e co-diretor da Aliança para Conservação dos Felinos Sul-Americanos.

Financiado pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente, o trabalho de reintrodução de gatos em SP e no Maranhão liderado por Tadeu é uma das primeiras experiências do gênero desenvolvidas no Brasil. Na cidade de São Paulo os estudos são feitos com indivíduos da espécie Leopardus tigrinus (popularmente conhecido como gato-do-mato) nascidos no zoológico local. No Maranhão o programa é aplicado nesta e em outras três espécies de felinos brasileiros – gato-leudo ou gato-maracajá (Leopardus wiedii), gato-maracajá-verdadeiro ou jaguatirica (Leopardus pardalis) e gato-mourisco (Puma yagouaroundi). Em São Luís os animais chegam até o Instituto através de apreensões de tráfico feitas pelo Ibama, que doa os indivíduos a um criadouro conservacionista particular (áreas especialmente delimitadas e capazes de possibilitar a criação de espécies da fauna silvestre brasileira, com assistência adequada) e este os disponibiliza para o programa de reintrodução.
O trabalho com os gatos se divide em três etapas: substituição da dieta usando presas vivas, adaptação no ambiente e monitoramento do animal solto através de radiotelemetria (sistema em que um rádio fixado no animal emite uma freqüência que é capturada por um outro rádio; isto permite localizar e obter dados sobre o comportamento e saúde do indivíduo solto). 

Considerando as adaptações necessárias a cada espécie, estas atividades são a base do trabalho de reintrodução. “O acompanhamento depois da soltura deve ser contínuo, para sabermos como está a readaptação do animal ao ambiente natural”, explica Tadeu, informando que alguns resultados preliminares do programa já demonstram que a técnica é viável para os objetivos; as primeiras solturas em SP devem começar no final de 2005.
“A reintrodução define um dos tipos de soltura de animais, termo técnico mais correto para se definir esse tipo de trabalho” esclarece é o professor Nabor Veiga, do Departamento de Produção e Exploração Animal da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade do Estado de SP (UNESP), no município de Botocatu. Nabor é responsável pelo setor de criação de animais silvestres dentro da faculdade e é o idealizar do Projeto Centrofauna, um centro de triagem criado em 2003 e patrocinado pela empresa Anidro do Brasil.

Um centro de triagem (CETA) como o Centrofauna é um dos locais autorizados por lei a receberam animais provenientes de apreensões do tráfico. Os outros são zoológicos e criadouros conservacionistas. A legislação brasileira não permite posse de animais silvestres por pessoa física, a não ser através de compra com nota fiscal de um criadouro comercial devidamente registrado pelo Ibama. 
“Um animal silvestre em posse de uma pessoa está deixando de cumprir seu papel biológico. Por exemplo, 82% das espécies vegetais de florestas tropicais e subtropicais são disseminadas pela fauna”, ressalta o professor da UNESP. 

O Projeto Centrofauna trabalha em parceria com a UNESP, o IBAMA, a Polícia Militar Florestal e a Prefeitura de Botocatu recebendo animais vítimas de tráfico. No centro de triagem se desenvolve primeiramente o processo de reabilitação, etapa fundamental de preparação dos animais antes de se pensar em soltá-los na natureza. Depois de devidamente identificados, os animais são avaliados em relação ao seu grau de mansidão, que define o nível de domesticação numa escala de 0 a 5. Zero significa estado selvagem e cinco, estado domesticado.

Avaliado o grau de mansidão do indivíduo, no centro de triagem o animal ainda passa por estudos de comportamento (etologia), identificação taxonômica (espécie, local de ocorrência etc) e do seu estado de saúde. Todas essas informações embasam o planejamento do que será feito com o animal e o tempo em que o mesmo ficará em quarentena antes de ser solto em área apropriada. Dependendo do caso, a reabilitação pode levar anos, e até uma década, de forma a garantir a readaptação sem problemas para ele e para a natureza.

“O nosso centro também tem um projeto de levantamento fitossociológico (identificação de espécies vegetais e suas relações com o meio) em propriedades que queiram se cadastrar em prefeituras ou no IBAMA como uma Área de Soltura de Animais Silvestres (ASA). Além de identificar as áreas mais adequadas para as solturas, este programa contribui no processo de reabilitação e conservação da área natural estudada”, conta Nabor, informando ainda que o Centrofauna faz um trabalho de educação ambiental com Juízes no Fórum da cidade, divulgando informações importantes da legislação em vigor sobre manejo de animais silvestres.

Implicações legais

Para cada animal assistido em um centro de triagem é aberto um processo judicial, que reúne o boletim de ocorrência emitido pela policia na apreensão e todas as informações contidas no banco de dados técnicos sobre o trabalho de reabilitação desenvolvido. 
O animal só pode então ser solto/reintroduzido numa área natural com autorização de um Juiz de Direito, que analisa o processo em questão. Daí a importância desses profissionais estarem bem informados sobre o trabalho de reabilitação e a legislação existente para animais silvestres.
Em termos técnicos os trabalhos de soltura e reintrodução feitos no Brasil usam como base diretrizes e manuais da IUCN. Em termos legais, o país ainda não detém uma legislação específica sobre o assunto. Em 2004 o IBAMA começou a discutir a preparação de uma instrução normativa que irá estabelecer os protocolos para trabalhos de reintrodução no país. Este documento ainda não está concluído e deverá ser lançado nos próximos meses. 

O único estado que já tem legislação específica para trabalhos técnicos de soltura é São Paulo.
“No Brasil a experiência com reintrodução ainda é muito pequena e existe também muito preconceito, muitas vezes por falta de conhecimento ou confusão com técnicas de introdução, que envolve espécies exóticas. Quem é contra a técnica usa o argumento de destruição da população natural por conta de doenças e mudança da variabilidade genética. Mas vários estudos já mostram que se o processo de soltura for feito dentro dos critérios corretos, a taxa de insucesso é mínima”, defende o biólogo e analista ambiental Roberto Cabral Borges, chefe da divisão de fiscalização de fauna do IBAMA.

Segundo Roberto, entre as prerrogativas que devem ser seguidas num trabalho de sucesso de reintrodução estão o estudo caso a caso de cada espécie, a realização da soltura somente em área de sua ocorrência e o monitoramento, para verificação da readaptação e mensuração dos resultados. Outra técnica destacada pelo biólogo que já tem se mostrado muito eficaz em trabalhos de reintrodução com algumas espécies é a “soft release” (soltura suave), que consiste num sistema de semi-cativeiro. Nele o animal tem seu nível de eficiência à readaptação ao ambiente natural aumentado progressivamente.

Solução para o tráfico?

Um dos maiores empecilhos para os projetos de reintrodução é justamente um grave problema enfrentado no Brasil: o tráfico de animais silvestres. O número de animais apreendidos é muito grande e, também, é comum os centros de triagem não terem condições de dar conta do trabalho no nível ideal por falta de espaço físico e recursos financeiros. Alguns processos de reabilitação podem demorar um longo tempo e, conseqüentemente, se tornam caros. De acordo com dados do IBAMA, no Brasil são apreendidos ao redor de 45 mil animais silvestres por ano, sendo cerca de noventa por cento espécies de aves. 
Considerando que esse dado é medido num contexto onde a fiscalização ainda é reativa, e não proativa, como deveria ser, estima-se que na realidade esse número, infelizmente, deva ser muito maior.
“A reintrodução é um trabalho muito importante, mas acho que no país temos que trabalhar duro na causa maior da grande quantidade de animais desgarrados, que é o tráfico. Não adianta reintroduzir e do outro lado os números do tráfico e do desmatamento só aumentarem”, diz Elenise Angelotti Sitimski, bióloga responsável pelo Projeto de Conservação do Papagaio-de-cara-roxa da ONG Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), de Curitiba. Em 2000 o projeto teve uma experiência de sucesso com reintrodução de filhotes da espécie apreendidos do comércio ilegal e atualmente está focado no estudo da reprodução da espécie em cativeiro, em conjunto com o Zoológico Municipal de Curitiba.

Como alerta Elenise, o tráfico é um problema sério no Brasil e pode se tornar o maior inimigo dos trabalhos de soltura, tornando-os inviáveis. A solução parece ter que tomar um caminho que alie estudos para aperfeiçoamento da técnica de reintrodução com um trabalho intenso de educação ambiental em relação à importância da conservação de ambientes naturais e os problemas gerados por posses indevidas de animais silvestres em ambientes domésticos. Além de uma fiscalização rígida e uma punição forte para os traficantes. “Nunca é uma boa opção um animal silvestre permanecer com uma pessoa numa casa, por mais domesticado que ele esteja. Esta posse se consiste num crime e contribui com a prática do tráfico”, reitera o chefe de fiscalização de fauna do IBAMA.

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A reintrodução de felinos ainda não é um trabalho muito experimentado no Brasil e na América Latina. O objetivo do Programa Pró-Carnívoros, realizado sem interrupções desde 2002, é justamente testar e provar a viabilidade técnica de animais em cativeiro serem devolvidos à natureza de forma a criar uma metodologia de manejo da própria espécie e proporcionar mecanismos de conservação das áreas naturais.

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Tipos de soltura

Reintrodução: introduzir de volta indivíduos de uma espécie que tenha desaparecido de determinada área.
Introdução: soltar indivíduos de uma espécie numa área onde ela não ocorria
Translocação: levar indivíduos de uma espécie de uma área para outra.
Suplementação: soltar indivíduos de uma espécie numa área onde ainda existem alguns poucos indivíduos da mesma.
Reintrodução benigna: introduzir indivíduos de uma espécie em uma área onde ela nunca tenha existido. Ainda não acontece no Brasil.

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Eutanásia X Reintrodução 
Roberto Cabral Borges, chefe da divisão de fiscalização de fauna do Ibama, alerta que há no Brasil um movimento contra a reintrodução de animais silvestres que levanta a bandeira da eutanásia como solução para diminuir o grande número de animais fora de seu ambiente natural. Segundo o biólogo, o termo eutanásia é usado de forma errada para se justificar a execução dos animais como se os mesmos estivessem doentes.
“Há uma instrução normativa a ser oficializada que define a prática da eutanásia. Este documento inclusive passou por consulta pública no início de 2005. O problema é que foi mal divulgada e não ganhou repercussão. Matar os animais está sendo vista como a solução mais simplória para não se enfrentar o problema real, que é o tráfico, e se aumentar o preconceito em relação à já provada viabilidade técnica de programas de reintrodução”, afirma.


Jaqueline B. Ramos
Jornalista ambiental

Fonte:


Defaunação - As consequências de um planeta sem animais


Mauro Galetti, professor do Instituto de Biociências (IB) da UNESP, Câmpus de Rio Claro, junto com pesquisadores dos EUA, México e Reino Unido, acaba de publicar um artigo na revista Science mostrando que o mundo está passando por uma das maiores extinções de animais já vista. Essa onda de extinções de animais é chamada de “Defaunação”.

A mídia e o público conhecem bem o termo “Desmatamento” que é a perda de floresta, mas pouco é alertado sobre os efeitos da Defaunação na Terra. 

Enquanto imagens de satélite podem detectar mudanças rápidas de desmatamento, a perda da fauna é um evento que passa despercebido pelos órgãos de proteção ambiental. “Nosso trabalho vem a alertar a rápida diminuição das populações de vertebrados e invertebrados no Planeta e suas conseqüências para o bem-estar da humanidade”, explica Mauro Galetti, docente do Departamento de Ecologia do IB da UNESP. “Por que precisamos salvar os animais? Porque eles fornecem serviços ambientais imprescindíveis à sobrevivência da nossa própria espécie, não apenas porque são ‘bonitinhos”, complementa Galetti.

Desde o início das navegações o ser humano levou à extinção 322 espécies de vertebrados. Mas a extinção desses animais é direcionada aos grandes animais. Desde a última extinção de grandes mamíferos no final da Era do Gelo a 10 mil anos atrás, o Planeta vem afetando a sobrevivência dos grandes animais. Os pesquisadores mostraram que é evidente que no futuro apenas as espécies pequenas como camundongos, gambás e ratos sobreviverão em nosso Planeta.

Galetti explica que, do ponto de vista de abundância, nos últimos 40 anos, muitas espécies reduziram suas populações em cerca de 30%. A redução da abundancia de invertebrados tem sido mais severa ainda (35% nos últimos 40 anos). “A maioria dos pesquisadores analisa os efeitos humanos sobre a extinção das espécies e nesse trabalho nós enfocamos a extinção local de populações. A extinção de uma espécie tem um grande impacto, e a redução das populações animais causa um impacto maior ainda nos ecossistemas. Enquanto a extinção de uma espécie é um processo lento, a extinção local de populações é um processo rápido”, informa Galetti.
Resumo da pesquisa

Vivemos em meio a uma onda global de perda de biodiversidade impulsionada pela ação humana. Os impactos humanos sobre a biodiversidade animal são uma forma sub-reconhecida da mudança ambiental global. Entre os vertebrados terrestres, 322 espécies foram extintas desde 1500, enquanto as populações das espécies restantes mostram 25% de declínio médio em abundância. 
Padrões de invertebrados são igualmente terríveis: das 67% das populações monitoradas, 45% mostram significativo declínio na sua abundância. Tais declínios animais ocasionam um efeito cascata sobre o funcionamento dos ecossistemas e o bem-estar humano. Muito permanece desconhecido sobre a “Defaunação no Antropoceno”. Estas lacunas de conhecimento dificultam a nossa capacidade de prever e limitar os impactos da defaunação. Claramente, no entanto, a defaunação é tanto um componente penetrante da sexta extinção em massa do Planeta como um dos principais impulsionadores da mudança ecológica global.

Conseqüências da defaunação

- Polinização: Insetos polinizam 75% da produção agrícola do mundo e a redução na fauna de abelhas e outros polinizadores pode reduzir a produção de alimentos.
- Controle de Pestes: Morcegos e aves controlam pragas agrícolas. Nos EUA o papel desses predadores é estimado em US$45 bilhões/ano.
- Ciclagem de nutrientes e decomposição: Invertebrados e vertebrados (urubus) tem um papel importante na decomposição orgânica e na ciclagem de nutrientes.
- Qualidade da água: A defaunação também afeta a qualidade da água. O declínio de sapos e pererecas aumenta as algas e detritos, reduzindo nutrientes.
- Saúde pública: A defaunação afeta a saúde humana de diversas maneiras, desde a desnutrição até o controle de transmissão de doenças.

Diálogo com Mauro Galetti

Qual é a principal conclusão do artigo?

Nosso trabalho levantou dados sobre as populações de vertebrados e invertebrados no Planeta e para nossa surpresa, não estamos vivendo apenas uma onda de extinção de espécies, mas muitas espécies estão tendo um rápido declínio populacional. Não apenas grandes mamíferos, mas muitos invertebrados estão em declínio.

Por que isso é importante?

A ciência tem se preocupado com o impacto das extinções das espécies, mas o problema também é a extinção local de populações. Alguma espécies podem não estar globalmente ameaçadas mas podem estar extintas localmente. Essa extinção local de animais afeta o funcionamento dos ecossistemas naturais vitais ao homem. Nesse trabalho compilamos dados populacionais de grandes mamíferos, como rinocerontes, gorilas, leões e também de invertebrados como as borboletas. Um em cada 4 espécies de vertebrados está tendo suas populações reduzidas.

Qual o método utilizado e as implicações da pesquisa?

Compilamos dados da literatura. Nosso trabalho aponta para dois pontos importantes. Primeiro, muitas populações de animais estão em rápido declínio e, segundo, os animais beneficiam o bem-estar da humanidade não apenas provendo de alimento, mas polinizando e dispersando plantas, e controlando pragas e doenças. Um Planeta sem fauna trará sérias consequências para nossa própria espécie.




Oscar D'Ambrosio

Jornalista da Agência UNESP

Fonte: