segunda-feira, 19 de maio de 2014

Etologia - por Gelson Genaro

Aplicação de conceitos básicos em etologia na clínica médica veterinária felina



Por incrível que possa parecer a maior causa de morte de gatos nos Estados Unidos é a eutanásia decorrente do excesso de animais em abrigos (ROCHLITZ, 2005). Muitos desses animais, em algum momento de suas vidas tiveram um proprietário, ou cuidador, então como esses animais terminaram seus dias dessa forma? Serão discutidas as razões de tal situação, particularmente da possível intervenção profissional médico veterinária nesse problema.


Nem todas as pessoas são apaixonadas pelos gatos, entretanto, o número de proprietários interessados nesta espécie cresce significativamente (TURNER; BATESON, 2000)


Hoje há especialistas em áreas da Medicina Veterinária que tratam de enfermidades específicas do felino doméstico, existem também clínicas médicas veterinárias que atendem unicamente os indivíduos desta espécie. Portanto, é essencial que os estudantes de Medicina Veterinária tenham uma formação específica focada nas necessidades comportamentais do gato.


O estudo do comportamento animal, particularmente na disciplina de Etologia, vem crescendo dentro das áreas clínicas para uma grande variedade de espécies animais. Neste trabalho, centrado nos felinos domésticos, serão abordados dois aspectos importantes:
o manejo e a Etologia.

De início, a discussão será dirigida para as razões do aumento crescente do número de felinos em nosso meio (BRADSHAW, 2000; BROOM; FRASER, 2010). 
Figura 1 – Características felinas e cuidados necessários para o controle dos principais
problemas comportamentais felinos



Nos dias atuais, há cada vez menos espaço e tempo disponíveis (Figura 1) e, dadas suas características comportamentais (Figura 2), esta espécie é capaz de se adaptar de maneira mais satisfatória que o cão, às circunstâncias que lhe são oferecidas. 



Figuras 2 – O período inicial de desenvolvimento
do gato doméstico é determinante para seu perfil
comportamental na vida adulta

Porém, isso provavelmente também repercutirá em um aumento de situações de conflito, entre o proprietário e o animal, e também criará uma necessidade aguda do médico veterinário informar-se a respeito das condições indispensáveis que esta espécie, que até recentemente “viveu à sombra” do cão, necessita para se desenvolver e viver satisfatoriamente (GENARO, 2010). Neste ponto, são resgatados os conceitos fundamentais do bem-estar animal, ou seja, o estado do animal em questão, ao se defrontar com as condições domésticas que lhe são proporcionadas. 

Período Sensível e Enriquecimento Ambiental 


O período sensível, também denominado de período crítico, é a época da vida do animal em que eventos particulares são capazes de produzir efeitos importantes no seu comportamento, especialmente sobre a sua sociabilidade. As ligações sociais estabelecidas dentro desse período mais concentrado (no caso do gato doméstico, focado entre a segunda e a sétima/oitava semanas de vida) terão maiores chances de serem mantidas ao longo da vida do animal, com conseqüente maior impacto no seu comportamento quando adulto (TURNER; BATESON, 2000). Evidentemente o aspecto genético do animal é relevante e as ligações e experiências vivenciadas durante o período sensível terão enorme repercussão na vida do indivíduo. As experiências dessa fase da vida do animal, deverão ser amplamente consideradas pelo clínico veterinário, pois as manipulações e experiências (favoráveis e desfavoráveis) servirão como um importante aprendizado para o animal e, a partir daí, o indivíduo terá facilidade ou dificuldade para os procedimentos futuros que o envolverem.

Figuras 3 – Representação esquemática para o bem-estar felino, relacionando a limitação ambiental e o comportamento exploratório



 Tendo passado o período sensível (ou mesmo quando o gato é adquirido após este período – o que frequentemente ocorre), é essencial a continuidade das boas interações e das experiências positivas, já que o felino continua a der, que com menos flexibilidade e mais receios, se comparado ao período sensível. Outra erística   e deve estar atento é que o animal denominado de gato doméstico é uma espécie de ‘pool’. verdadeiro aglomerado de perfis comportamentais, que vai desde um animal dócil e ltamente dependente de seu proprietário até aquele mais esquivo, e que se mantém à stância amente (GENARO; COLLUCCI, 2009). 

Aquele mais dócil pode mesmo nunca ter visto outro indivíduo de sua espécie, além de sua mãe e irmãos, ou nunca ter pisado em solo, vivendo em apartamentos por toda sua existência, contrapondose a aqueles indivíduos denominados ferais, que foram, por várias gerações, mantidos distantes de um convívio próximo às pessoas, caçando ou alimentando-se de sobras encontradas. 

Muitos desses animais, não apenas os denominados de ferais, mas também os que vivem nos quintais, autodeterminam seus acasalamentos, independentemente, vivendo uma situação muito próxima aos animais silvestres, sem maiores interferências - em seus acasalamentos - advindas do convívio com humanos. Logo, deve-se considerar com mais cuidado se esse animal vive realmente uma vida doméstica. 

Contudo, deve-se de ter em mente a possibilidade de variações no perfil dos animais, já que além dos aspectos acima relacionados, também devem ser considerados: o contato com a mãe, o temperamento dos pais, a experiência com seus possíveis irmãos de ninhada, todos em conjunto, interferindo no perfil ‘final’ do indivíduo. 

Existem, então, duas situações às quais o profissional deve estar atento, pois os problemas e situações originados nos animais mantidos em restrição de deslocamento (sendo denominados de domiciliados) são extremamente diferentes daquelas de animais não domiciliados. 

Portanto, o proprietário deve ser informado dessas questões. Fundamentalmente esses animais são os mesmos, diferindo, apenas, no relativo a situação a que foram submetidos.


E é aqui que se percebe a relevância do Período Sensível.
Um exemplo consideravelmente importante e  
que pode ser observado no cotidiano da clínica médica
veterinária: a falta de manipulação do filhote, especialmente
entre a segunda e a sétima/oitava semanas de vida
culmina, normalmente, num indivíduo adulto irascível,
intolerante às manipulações necessárias da Clínica.

Portanto o ato, a princípio, irrelevante de abandonar
uma mãe com sua ninhada - ou somente os filhotes,
ou ainda, qualquer variação dessa forma de descaso -
é criar condições para que esses animais se tornem o
que se denomina de ferais, ou asselvajados, com todas
as consequências sanitárias advindas desse descaso,
tornando-se mais difícil (senão impossível), no futuro,
o seu manuseio, seja por parte do médico veterinário ou
do cuidador.

Alguns indicadores comportamentais relevantes de
estresse devem ser considerados: gatos ferais quando
mantidos reclusos não se alimentam, não realizam a auto
limpeza, e evitam, ao máximo, o ato de defecar, sinais
inequívocos de inibição comportamental, situação muito
clara de um estresse extremado. São comuns as oportunidades
em que esses animais (ferais ou assemelhados)
são submetidos a um convívio forçado, por exemplo, em
centros de controle de zoonoses, abrigos, ou mesmo nas
clínicas quando são mantidos para medicação. 
Essa situação
também ocorre na casa do proprietário quando
um novo indivíduo é introduzido dentro de um plantel já
estabelecido (socialmente). Logo, deve-se estar atento às
características do animal e, quando existirem indivíduos
com essas peculiaridades, deve-se oferecer as condições
mínimas exigidas para o animal, por exemplo,
uma acomodação
em separado, ou acobertada, para permitir
que o animal sinta-se minimamente confortável, além
de ser facilitado o trabalho dos profissionais envolvidos

O gato responde, normalmente, com inatividade
quando mantido em situações estressantes. Portanto,
alterações de comportamento são frequentemente os
primeiros indicadores de empobrecimentos do seu Bem

Estar, ou também de processos patológicos em curso
(ROCHLITZ, 2005).
Recomenda-se que seja disponibilizado ao animal
uma separação considerável entre as áreas de: alimentação,
descanso e eliminação (de fezes e urina), e, quando
há vários animais em grupos, deve-se oferecer mais
uma opção de área, que é a de isolamento para algum
indivíduo que deseje manter-se afastado dos demais. Na
possibilidade do animal não contar com essas opções o
mais comum é que passe a limitar suas atividades, como
anteriormente descrito, criando condições para que
ocorram processos patológicos (diversos).


Outro ponto a que se deve estar atento, como profissionais,
é a qualidade da área disponibilizada ao animal.
O gato, como um excelente escalador, apresenta necessidades
específicas quanto a esse aspecto, portanto
empoleirar-se em locais seguros e isolados, sempre
acima do piso, é uma necessidade muito importante
que precisa ser atendida (MACHADO; GENARO, 2010;
ROCHLITZ, 2005).
Para um animal com os sentidos tão desenvolvidos,
como são os mamíferos na sua maioria, é fundamental
um aporte satisfatório de estímulos. Não se deve esquecer
que este animal é um caçador muito eficiente, logo
mantê-lo entretido é um desafio contínuo (BRADSHAW,
2000). Existem diversas opções que poderão ser levadas
em conta, e o profissional deverá considerar: a segurança
do animal, e dos demais envolvidos (cuidadores, outros
animais, etc.), além dos custos e possibilidades de execução
da proposta. Essa é uma área específica da Etologia,
o enriquecimento ambiental, que irá possibilitar a manifestação do comportamento exploratório do animal
(DANTAS-DIVERS et al., 201; 1MACHADO; GENARO,
2010); que pode ser definida como a atividade promovida
por um estímulo, normalmente novo, e que consiste em
atos e posturas, que levam à obtenção de informações
sobre um objeto, ou ambiente, não familiar. Deve-se,
entretanto, considerar também a dependência do temperamento do indivíduo, bem como, da situação a que está submetido, que poderá desencadear comportamentos
típicos da espécie (por exemplo: que o auxiliariam em
situações adversas, escondendo-se).

O enriquecimento ambiental (Figura 4) visa criar um
ambiente mais propício e estimulante para o indivíduo,
permitindo que o animal expresse suas manifestações
corriqueiras, facilitando a sua adaptação a um ambiente
desafiador, mantendo-o ocupado, por meio das situações
propostas e minimizando o seu sofrimento.

A adaptação de diferentes propostas é sempre possível, desde que o
proprietário esteja consciente da necessidade de adequar
o meio ambiente às necessidades de seu animal. O favorecimento
da adaptação do animal aos desafios impostos
pelo ambiente, proporcionará uma condição de bem-estar
privilegiada que atenderá às requisições do indivíduo,
que, são muito próximas as dos seus familiares silvestres.


Considerações Finais

O profissional deve alertar o proprietário de felídeos
sobre os aspectos comportamentais desses animais e
discutir minuciosamente sobre o que ele espera de um
animal de companhia, minimizando as chances de um
conflito entre ambos, com um possível abandono. Muitas
reclamações apresentadas por proprietários são manifestações
corriqueiras de um animal mantido em condições
inadequadas, ou mesmo consideradas normais para um
gato, em residências.

Portanto, o proprietário deve ter
a exata medida do que terá pela frente ao adquirir um
exemplar dessa espécie animal.
O conhecimento das características comportamentais,
bem como do desenvolvimento e da evolução temporal
do animal que se pretende adquirir poderá auxiliar na
prevenção de problemas comportamentais, intervindo-se
assim o mais precocemente possível, ou mesmo corrigindo-
se transtornos comportamentais adquirido, caso
as opções anteriores não tenham sido efetivas.

Animais mantidos em residências, sem acesso à rua,
possuem maior longevidade, fruto do isolamento sanitário,
ou da prevenção de incidentes comuns (acidentes,
conflitos, etc.). Entretanto, o empobrecimento advindo
desse isolamento pode tornar-se fonte de alterações,
inicialmente comportamentais, e mais tarde com significativas
manifestações clínicas problemáticas.

Um exemplo: o isolamento social (enfatizado neste texto),
que é fruto de um proprietário que possui apenas um
único animal mantido nessa condição desde a infância
até a vida adulta, poderá determinar que este indivíduo
não se aproxime de outro para o acasalamento ou mesmo
se tiver que ser mantido próximo a outros animais. Com
essas informações básicas, tanto o profissional como o
proprietário poderão minimizar as chances de ocorrerem
problemas e conflitos ao longo da vida do animal.

Referências
BRADSHAW, J. W. S. The behaviour of the domestic cat. Wallingford: CABI Publishing,
2000. p. 219.
BROOM, D. M.; FRASER, A. F. Comportamento e bem estar de animais domésticos. 4.
ed. Barueri: Manole, 2010. p. 438.
DANTAS-DIVERS, L. M. S.; CROWELL-DAVIS, S. L.; ALFORD, K.; GENARO, G.;
D’ALMEIDA, J. M.; PAIXÃO, R. L. Agonistic behavior and environmental Enrichmentof
cats communally housed in a shelter. JAVMA, v. 239, n. 6, p. 796-802, 2011.
GENARO, G.; COLLUCCI, E. Posse responsável de animais de companhia. Ciência Hoje,
v. 44, n. 260, p. 68-69, 2009.
GENARO, G. Gato doméstico: futuro desafio para controle da raiva em áreas urbanas?
Pesquisa Veterinária Brasileira, v. 30, n. 2, p.186-189, 2010.
MACHADO, J. C.; GENARO, G. Comportamento exploratório em gatos domésticos (Felis
silvestris catus Linnaeus, 1758): uma revisão. Archives of Veterinary Science, v. 15, p.
107-117, 2010.
ROCHLITZ, I. The welfare of cats. Dordrecht, The Netherlands: Springer, 2005. 282 p.
TURNER, D. C.; BATESON, P. The domestic cat – The Biology of its behaviour.
Cambridge: Cambridge Univeristy Press, 2000. p. 244.
Agradecimentos:
Ao Dr. Alexandre Jacques Louis Develey pelo estímulo na redação deste manuscrito e
também ao revisor anônimo que contribuiu substancialmente na preparação deste.

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